Quem canta seus males espanta


Fabricio Pamplona 3 minutos de leitura

A discussão acirrada, muitas vezes polêmica, em torno da Cannabis medicinal pode ser compreendida muito mais profundamente quando colocamos em perspectiva o que acontece pelo lado "de dentro", quando nosso organismo tem contato com as substâncias presentes nessa planta.

Muitas vezes encarada simplesmente como entorpecente, ou como uma planta maligna a ser evitada, a Cannabis contém substâncias químicas – os canabinoides – que interagem diretamente com o sistema endocanabinoide, uma complexa e intrincada rede "não localizada" em nosso organismo. Ela age sob demanda e possui uma capacidade enorme de modular praticamente tudo o que fazemos, impactando a sensação de dor, fome, sono, motivação, emoções e comportamento.

As descobertas mais recentes da ciência trazem um aspecto muito interessante dessa modulação: ela pode ser induzida e obtida sem a presença dos canabinoides! Como assim, estamos falando de um "efeito da maconha" mas sem a maconha? Parece não fazer sentido.

Aqui, vale uma explicação para o leitor: a ativação natural "endógena" do sistema endocanabinoide não é sinônimo direto dos efeitos obtidos por um usuário. Longe disso. Os endocanabinoides exercem efeitos canabinoides mais sutis, agindo sob demanda, quando e onde são necessários. É um sistema bastante elegante de ajuste fino que já vem "de fábrica" e, por muito tempo, foi um ilustre desconhecido da ciência.

tudo que eleva nosso humor e nos faz bem conta, de alguma maneira, com a participação dos canabinoides endógenos.

Hoje sabemos que alguns alimentos podem ativar esse sistema, como precursores. Mais recentemente, foi descoberto que certos hábitos exercem o mesmo efeito. Grosso modo, tudo que eleva nosso humor e nos faz bem conta, de alguma maneira, com a participação dos canabinoides endógenos. Se quiser chamar pelo apelido menos nobre, as nossas "endoconhas".

Já se sabe que parte do runner's high, a sensação de euforia que os corredores sentem após correrem por longos períodos, se deve, também, à liberação de endocanabinoides no organismo. De certa maneira, é parecido com o que já se falava sobre as endorfinas pouco tempo atrás. Está lembrado? Pois é.

COMER, DANÇAR, CANTAR

Um estudo recente tornou ainda mais interessante esse tópico, porque fez a comparação direta entre atividades corriqueiras como andar de bicicleta, comer, conversar, ler, dançar e cantar. As pessoas avaliadas estão bastante fora do grupo típico que você consideraria para uma pesquisa sobre canabinoides: estamos falando de senhoras do coral da Igreja, com idade média de 61 anos.

Os pesquisadores tentaram compreender qual a relação entre a realização de atividades típicas em grupos de idosos, o apetite, os endocanabinoides e a sensação de bem-estar gerada quando estas substâncias agem no organismo.

Vamos às conclusões. Pedalar em uma bicicleta ergométrica por 30 minutos reduziu a fome das participantes, mas não afetou o nível emocional. Ler apenas estimulou o apetite. Dançar reduziu as emoções negativas, sem qualquer efeito sobre a fome. Já cantar, essa sim, gerou um prazer enorme, trouxe felicidade e promoveu uma intensa liberação de endocanabinoides.

Claro que podemos avaliar criticamente essa conclusão e dizer que, possivelmente, cantar foi a atividade mais efetiva, por conta da intensa relação das voluntárias com essa atividade – afinal, estamos falando de senhoras que cantam no coral.

Promover o humor e o bem-estar é uma forma natural de proteger seu cérebro contra o envelhecimento e todos os fatores prejudiciais associados.

Mas, acima de tudo, e mais importante, essa descoberta mostra a ligação clara entre os endocanabinoides e o bom humor, até a "felicidade", com perdão de alguma licença poética.

Promover o humor e o bem-estar é uma forma natural de proteger seu cérebro contra o envelhecimento e todos os fatores prejudiciais associados, como produção excessiva de radicais livres, inflamações crônicas subclínicas e até a tão temida neurodegeneração.

Atividades tão simples quanto cantar podem ser um recurso muito interessante para estimular o tônus endocanabinoide e, com isso, fortalecer a resiliência do organismo, reduzindo os efeitos deletérios da passagem do tempo.

Ao se fazer o que se gosta, estimulamos o organismo a permanecer ativo e, quem sabe, viver melhor e por mais tempo. Será o cantar a nossa fonte da juventude? Parece um questionamento simplório, mas pode estar aí mesmo o segredo da felicidade.


SOBRE O AUTOR

Cientista e empreendedor brasileiro, Doutor em Farmacologia e referência brasileira no uso medicinal de derivados da Cannabis. É funda... saiba mais