Se há um trabalho que a IA não vai substituir é o do “guru das planilhas”
Profissionais especializados vivem uma transição: das fórmulas ao poder das IAs que estão redesenhando o próprio conceito de planilha

Há uma década, Ben Collins deixou seu trabalho como contador corporativo e começou a ensinar outras pessoas a usar planilhas de maneira mais eficiente.
A decisão, assustadora naquele momento, acabou compensando. Hoje, Collins é dono de uma academia online de treinamento em planilhas e tem uma newsletter semanal sobre dicas de Google Sheets (com cerca de 50 mil assinantes).
Mesmo assim, mais uma vez ele se vê diante da incerteza: o próprio conceito de planilha está entrando em uma acelerada espiral de transformação.
“Nos últimos dois anos tivemos mais inovação do que nos 20 anteriores”, afirma Collins, referindo-se à explosão da tecnologia de inteligência artificial generativa e seu impacto no universo das planilhas.
Ele não está exagerando. Até recentemente, destravar todo o potencial de uma planilha era quase como aprender um idioma estrangeiro: fórmulas complexas, montanhas de funções misteriosas e um labirinto de opções de dar medo aos não iniciados.
Mas a IA generativa está remodelando a humilde, porém teimosamente complexa, planilha – e, em grande parte, isso parece uma coisa positiva.
Embora a IA levante inúmeros problemas práticos e éticos, operar dentro dos limites de uma planilha e no mundo preto no branco dos dados objetivos é justamente o contexto em que esses riscos preocupam menos – e onde as vantagens da tecnologia ganham brilho.
A grande pergunta agora é como essa transformação vai se desenrolar e se a figura do especialista em planilhas – seja como consultor independente ou como solucionador de problemas dentro de empresas – está evoluindo ou destinada a se tornar peça de museu.
A PLANILHA NA ERA DA IA
Quando Collins deixou o emprego de contador, em 2014, e seguiu uma trajetória própria centrada em planilhas, Anna Monaco tinha 11 anos. Hoje, aos 22, ela é fundadora e CEO da Paradigm, um serviço de planilhas de nova geração que faz o Excel parecer um ábaco.
A proposta da Paradigm é eliminar a complexidade e o esforço manual das planilhas e tornar o gerenciamento de dados simples. Em vez de se preocupar com fórmulas e funções, basta fazer upload dos dados ou só pedir à plataforma o tipo de informação necessária para que ela mesma busque a fonte.
Ainda é preciso ter uma base de conhecimento, nem que seja para saber como pedir algo à IA.
A IA da Paradigm cria a planilha, dá uma aparência profissional ao conteúdo e sugere ações para trabalhar aqueles dados e aplicá-los na prática. “Entrada manual de dados não deveria existir”, afirma Monaco. “Não somos apenas uma planilha. Estamos substituindo semanas de trabalho.”
A Paradigm e outras startups do setor (como Sourcetable, Grid e Julius) não estão apenas substituindo trabalho. Estão substituindo uma forma inteira de pensar sobre planilhas e o papel delas em nossas vidas.
Mesmo que os gigantes do setor não estejam correndo para redesenhar totalmente suas interfaces tradicionais, esse mesmo princípio já começa a aparecer nesses serviços de maneira mais discreta e complementar.

O Copilot, da Microsoft, está agora profundamente integrado ao Excel e pode ser acionado para sugerir fórmulas e analisar dados sem exigir o trabalho manual de sempre. O Google segue caminho semelhante com o Gemini no Sheets, disponível diretamente em qualquer célula com o simples comando “=AI”.
Mas, embora os erros introduzidos pela IA em uma planilha sejam menos alarmantes do que as “alucinações” já conhecidas da tecnologia, a Microsoft alerta que o Copilot é mais indicado para “cenários em que precisão determinística não é necessária”.
Isso levanta a dúvida: onde ficam os especialistas em planilhas – profissionais como Ben Collins, que passaram décadas acumulando conhecimento profundo sobre lógica e estrutura de dados? A resposta, assim como as planilhas convencionais, é complicada.
EXPERTISE, REINVENTADA
Collins vê o que está acontecendo no Google, na Microsoft e nas startups como um ganhoo. Ainda assim, como em tantas outras áreas, é impossível ignorar o impacto dessa mudança no futuro da profissão. A única certeza, por ora, é que não há certezas.
O especialista se mantém otimista. Ele diz perceber uma mudança no tipo de informação buscada por profissionais que lidam com dados, mas continua vendo demanda forte por um entendimento profundo das ferramentas e das filosofias que orientam seu uso.
“Ainda é preciso ter uma base de conhecimento, entender como tudo funciona”, diz. Nem que seja para saber como pedir algo a um assistente de IA e avaliar se o que ele entrega está correto.
As startups desse segmento estão substituindo uma forma inteira de pensar sobre planilhas.
Anna Monaco vê a Paradigm não como um movimento para substituir o Sheets ou o Excel, mas como uma opção voltada a uma nova geração de empresas. “Há um novo jeito de montar empresas, com equipes menores comandando muitos recursos e fazendo mais coisas com os que tem”, afirma. “A Paradigm está construindo ferramentas para esse futuro.”
Algo em que ela e Collins concordam: a expertise não vai desaparecer. A CEO afirma já observar o surgimento de “consultores Paradigm” – profissionais especializados em ajudar empresas a usar ao máximo a plataforma que ela criou.
“É uma expertise diferente. Ainda há enorme valor em se tornar um usuário avançado e saber explorar essas ferramentas. Na verdade, há ainda mais valor agora que elas são mais poderosas”, diz Monaco. “A necessidade de treinamento continua tão importante quanto sempre foi”, concorda Collins.
Ao menos por enquanto, o toque humano e a capacidade de pensamento crítico que a IA não consegue reproduzir totalmente seguem tão importantes quanto antes.