Trazer a cultura local para o centro da criatividade beneficia toda a indústria da música
Ritmos regionais e expressões culturais como o piseiro e o brega estão ganhando mais visibilidade na música pop e nas campanhas nacionais de publicidade

Diante do atual cenário musical brasileiro, que segue cada vez mais conectado globalmente, podemos perceber o crescimento da tendência de conscientização de muitos artistas sobre suas origens.
O resgate de lugares e comunidades, estilos populares, jeito de vestir e narrativas periféricas não demonstra apenas a nostalgia sobre algo vivido, mas traz para a conversa a “retórica do retorno”, que trabalha a re‑apropriação estética, cultural e política de identidades antes marginalizadas.
No Brasil, temos dois exemplos emblemáticos: Anitta e Emicida. A cantora carioca nasceu em Honório Gurgel, zona norte do Rio de Janeiro, e fez questão de evidenciar esta tendência em seu álbum "Funk Generation" (2024), que rendeu indicação ao Grammy como Melhor Álbum de Pop Latino, ao trazer como proposta a celebração das suas raízes periféricas e afro-brasileiras.
Anitta revelou à imprensa que dar vez e voz ao funk mundialmente era o seu sonho. “Como prometi, o funk está aí no topo global com um artista mundialmente conhecido”, comemorou.
Já o rapper Emicida, da zona norte da capital paulista, declarou que o rap precisa "ser livre" para furar bolhas e chegar a outros públicos, afirmando que ser a voz da periferia é um orgulho, “não quero nunca me desconectar dela”.

O artista resgata suas raízes ao tratar de temas como memória, ancestralidade e cultura periférica em suas rimas, valorizando a periferia como fonte de música, arte e criatividade.
Esses e outros artistas brasileiros que trazem a “retórica do retorno” em seus trabalhos mostram que já foi o tempo de ter vergonha ou esconder de onde vieram. Esse sentimento foi ressignificado, dando vez à sensação de “ter orgulho de suas origens”, o que se tornou parte importante da narrativa artística, criativa e musical.
Temas antes silenciados, como o cotidiano da periferia, negritude, cultura ancestral, funk, rap, brega e outros, hoje, estão explodindo e furando as bolhas sociais.
Grandes marcas estão apostando em colaborações com artistas fora da cena tradicional.
Um exemplo atual são os ritmos de brega e brega-funk – antes limitados ao Norte e Nordeste –, que chegaram com tudo aos bares de Pinheiros e Barra Funda, invadindo as rodinhas de jovens da geração Z que cantam em voz alta, sem timidez.
Todo esse resgate das raízes tem movimentado não somente a indústria musical, como também a indústria da moda. O jeito de se vestir nas periferias carrega formas de expressão identitária ligadas ao senso de pertencimento e à resistência ao racismo e ao apagamento social.
Do corte de cabelo dos "crias" ao chinelo Kenner e o shortinho da Bad Boy, a moda "da quebrada", com seu estilo próprio, se traduz em identidade e pertencimento, estampando palcos de artistas como as gêmeas Tasha e Tracie – rappers que reafirmam o empoderamento feminino, a cultura negra, a vivência periférica e o orgulho das suas raízes.
SURFANDO A ONDA
Grandes marcas, por sua vez, estão de olho neste nicho de mercado e seguem apostando de forma muito intensa em colaborações com artistas fora da cena tradicional, que trazem diversidade para as produções.
Ritmos regionais e expressões culturais como o piseiro, o sound system, o brega e outras vertentes que sempre foram muito fortes dentro dos seus territórios, agora estão ganhando mais visibilidade dentro da música pop e nas campanhas nacionais de publicidade.
O que se vê é uma ampliação do regional para o nacional, com a incorporação dessas sonoridades em projetos que refletem a pluralidade e a autenticidade da cultura brasileira, pois a indústria musical tem sede de transformação.

Essa transformação precisa ser compartilhada. É essencial que pessoas no topo da pirâmide se comprometam ativamente em trazer diversidade às produções ao contratar e escolher quem senta à mesa.
Quando falo em abrir espaço, penso na potência criativa das periferias, especialmente da mulher negra periférica. Muitas vezes essa criatividade nasce da necessidade diante das barreiras impostas. Mas ela também traz soluções únicas, novos olhares e inspirações que podem redefinir empresas, marcas e lideranças.
Se essas produções passarem a ser reconhecidas como referência, e não como exceção, todo o ecossistema sairá ganhando: os artistas, as marcas e o público.