Cidade maravilha, purgatório da beleza do caos. O desafio do branding do Rio
A cidade tem um ativo cultural e emocional único no mundo. Mas esse ativo precisa ser tratado como uma plataforma intangível de valor

Se existe uma premissa básica no branding, é que o valor de marca não nasce do que ela diz ser, mas do que ela entrega de forma consistente, coerente e duradoura. Marca é percepção.
Cidades são marcas vivas, mutáveis, orgânicas, simbólicas e sujeitas aos ciclos reputacionais. O Rio de Janeiro talvez seja hoje o exemplo mais emblemático de como o capital simbólico, o desejo global e a reputação objetiva podem estar em risco extremo quando a percepção de valor fica comprometida.
Nos últimos 15 anos, o Rio esteve no centro do radar planetário: Jogos Pan-Americanos, Olimpíadas, Copa do Mundo, Rock in Rio, G20 – uma sequência de eventos que projetou a cidade como uma superbrand urbana, um ícone global de celebração, natureza, energia e cultura.
Mas, paralelamente, a cidade convive com contranarrativas permanentes. O recente episódio de violência nos complexos da Penha e do Alemão voltou a reposicionar o Rio sob outra lente recorrente: a da insegurança e do medo.
Na verdade, parece que o Rio vive uma crise eterna de coerência entre promessa e entrega. Vivemos em espasmos de brilho e sombra. Se fosse uma empresa, a marca estaria mais uma vez em colapso reputacional: discurso inspirador, produto instável, governança frágil.
Nenhuma marca, por mais carismática ou amada, sobrevive sem consistência. E é isso que está em jogo: a confiança, a previsibilidade e a capacidade de o Rio sustentar a própria promessa.
O pior é que nossos governantes parecem não entender o tamanho do prejuízo que essa falta de coerência irresponsável vem causando à nossa cidade.
A guerra virou propaganda. O medo, capital eleitoral. Em vez de uma política pública consistente e corajosa, temos uma estratégia de comunicação da violência, que se retroalimenta de narrativas de poder.
De um lado, o discurso da força. Do outro, o da indignação. No meio, a população exausta, usada como massa de manobra em uma batalha de narrativas que capitaliza em cima da dor e destrói o valor da marca “Rio de Janeiro”.

Parece óbvio que, enquanto as esferas públicas continuarem desarticuladas – ou, pior, disputando protagonismo em cima da tragédia –, o Rio seguirá refém de um mesmo ciclo vicioso simbólico. É a lógica da reputação sem continuidade, que tende a esgotar o valor de qualquer marca.
O Rio tem ativos que nenhuma outra cidade do mundo possui. Só ela é chamada de maravilhosa! Mas esse ativo precisa ser convertido em uma estratégia contínua de reputação, com um alinhamento básico entre storytelling e, acima de tudo, storydoing. Gestão, gestão, gestão!
No mundo das marcas, existem as fortes, que ocupam espaço na cabeça das pessoas, e as amadas, que ocupam o coração. O Rio sempre foi uma marca amada – uma cidade que desperta desejo, empatia, orgulho e uma conexão afetiva única e profunda. Essa condição garante uma dose extra de tolerância: a gente perdoa deslizes porque ama.
Mas tudo tem limite. Quando a incoerência é recorrente, o vínculo se desgasta e a marca perde aquilo que nenhuma estratégia de marketing tem a capacidade de recuperar: a relação de confiança.
A cidade tem um ativo cultural e emocional único no mundo. Mas não basta ser inspiração, é preciso ser exemplo.
O Rio precisa identificar com clareza o que é inegociável em sua gestão como marca. E, a partir daí, reconectar-se com seu lugar de potência – esse território simbólico onde natureza e cultura se fundem, onde a mistura é valor, onde a criatividade é força vital.
A cidade tem um ativo cultural e emocional único no mundo. Mas esse ativo precisa ser tratado como uma plataforma intangível de valor. Não basta ser inspiração. É preciso ser exemplo.
Place branding não é essencialmente sobre comunicação, é uma escolha estratégica e criativa sobre o lugar único que lhe cabe ocupar na cabeça e no coração das pessoas. Um pacto entre o que se promete e o que se entrega, entre o que se comunica e o que se pratica. Um movimento consistente e perene, que transcenda governos em um projeto de longo prazo.
Enquanto o medo continuar rendendo mais dividendos do que a esperança, o Rio continuará desperdiçando o que tem de mais precioso: a capacidade de inspirar o mundo e de curar a si mesmo.
Amar o Rio é também se indignar. E cobrar, na hora do voto, que sua gestão, em todas as esferas, esteja à altura da grandeza dessa marca que, mesmo ferida, ainda insiste em brilhar.
