IA levanta a questão que muitos temem: “qual é mesmo o seu trabalho aqui?”

A inteligência artificial tirou de nós as partes repetitivas e nos devolveu a chance de pensar, criar e construir com intenção

funcionário de escritório com um ponto de interrogação no lugar da cabela
Crédito: AndreyPopov/ Getty Images

Lena McDearmid 3 minutos de leitura

Há uma cena no filme "Como enlouquecer seu chefe" em que o personagem principal, Peter Gibbons – um programador que se sente infeliz com seu emprego – senta diante de dois consultores durante um processo de cortes na empresa.

Os consultores perguntam “como você descreveria o que faz aqui?”. Ele hesita, dá um sorriso de canto e admite que trabalha apenas uns 15 minutos por semana. No resto do tempo, está fingindo. Em 1999, era comédia. Agora, é quase uma confissão.

Essa pergunta voltou a nos assombrar.

Por anos a fio, lotamos nossas agendas, tivemos presença constante e mantivemos a engrenagem girando. Nosso valor era medido em horas, entregas e presença.

Era assim que precisava ser. Humanos eram o sistema, e o sistema exigia que continuássemos operando. Não questionávamos; era dessa forma que as coisas aconteciam.

A inteligência artificial mudou isso. Ela consegue executar muitas das tarefas que antes fazíamos para manter tudo funcionando: resumos, relatórios, acompanhamentos, atualizações, planilhas. Consegue organizar, calcular, escrever e executar em um ritmo impossível para nós.

Essa constatação é estranha no início, mas também libertadora. Agora podemos entregar essa parte. Podemos deixar o trabalho mecânico para as máquinas e retornar ao trabalho humano: pensar, decidir, projetar, conectar.

E como isso se traduz na prática?

Para começar, as conversas estão mudando. Quando o ruído diminui, as reuniões soam diferentes. Há mais espaço para fazer perguntas melhores.

Cena do filme "Como enlouquecer seu chefe"
Cena do filme "Como enlouquecer seu chefe", de 1999 (Crédito: 20th Century Fox)

Finalmente podemos falar sobre o que importa: o que a empresa realmente quer alcançar? O que vem a seguir? Do que precisamos para construir o produto, definir a estratégia, organizar o time e alinhar o propósito?

É realmente fantástico.

Porque, quando as pessoas deixam de estar soterradas por tarefas repetitivas, começam a aparecer de outro jeito. Trazem curiosidade. Dizem a verdade. Colaboram de formas novas.

Estou ouvindo isso em todos os lugares: em empresas que já estão avançadas em sua transformação com IA e naquelas que estão apenas começando. O tom mudou. As conversas estão mais humanas.

Podemos deixar o trabalho mecânico para as máquinas e retornar ao trabalho humano: pensar, decidir, projetar, conectar.

Ainda estamos na sala de espera dessa transição. Alguns andam de um lado para o outro, outros aguardam sentados, outros já foram chamados. Independentemente de onde a empresa esteja nesse percurso, a mudança começou.

O relatório 2024 Global Human Capital Trends, da Deloitte, descreve este momento como um “gap de prontidão”. A maioria dos líderes reconhece que a IA e outras tecnologias transformarão suas organizações nos próximos anos, mas poucos dizem se sentir preparados para conduzir suas equipes por essa mudança.

As ferramentas estão prontas. Os humanos ainda estão alcançando o passo.

Para os líderes, este é o momento de ajustar o foco. O trabalho ainda precisa ser acompanhado, mas o foco dessa atenção mudou.

homem com laptop no lugar da cabeça
Créditos: Cristina Gaidau/ SvetaZi/ Olena Koliesnik/ Getty Images/ Anunay Rai/ Unsplash

Não se trata mais de supervisionar tarefas, e sim de supervisionar direção: como projetamos, como executamos, como construímos e com quem. Liderar agora significa ser intencional e responsável pela maneira como o trabalho é criado, não apenas pelo modo como ele é concluído.

Muitos líderes estão reconstruindo – ou, pelo menos, redesenhando – a forma de liderar. A linguagem está mudando. O tom está mudando. Não é uma língua diferente, mas ganhou um novo sotaque. E quem vai prosperar nesta era será quem souber traduzir esse sotaque.

O tom mudou. As conversas estão mais humanas.

Serão pessoas capazes de transformar complexidade em clareza. De apresentar uma visão mais nítida, um propósito mais forte e uma capacidade mais profunda de comunicar o “porquê”.

Serão, como gosto de chamar, “líderes full stack”: aqueles que conseguem apoiar a frente, o fundo e o meio. Que entendem de produto, pessoas e processos, e transitam com fluidez entre esses elementos.

A inteligência artificial tirou de nós as partes repetitivas e nos devolveu a chance de pensar, criar e construir com intenção. Nos deu espaço para liderar.


SOBRE A AUTORA

Lena McDearmid é fundadora da empresa de aconselhamento Wryver. saiba mais