Startup aposta em sci-fi para criar companheiros digitais mais reais

Projeto mistura storytelling, ficção científica e tecnologia para gerar laços emocionais entre humanos e criaturas virtuais

mão robótica com uma flor, simbolizando companheiros digitais mais humanos
Créditos: Andrey Suslov/ Getty Images

Emily McCrary-Ruiz-Esparza 4 minutos de leitura

No conto "The Lifecycle of Software Objects" (O ciclo de vida dos objetos de software, em traduçãolivre), o escritor de ficção científica Ted Chiang conta a história de uma startup que desenvolve companheiros de IA, chamados digients, cujas personalidades ficam entre animais adoráveis e crianças brincalhonas.

Os engenheiros e pesquisadores que criam esses digients os ensinam a falar, socializar e conviver com os outros. Uma relação de "afeição" mútua se forma.

Curiosamente, quando Quinten Farmer estava tirando sua startup Portola do papel, uma das primeiras contratações que fez foi a de um escritor de ficção científica.

Os cofundadores (além do CEO Farmer, o CTO Evan Goldschmidt e o presidente Ajay Mehta) começaram a construir a empresa de companheiros de IA no fim de 2023 com apenas uma semente de ideia.

Seus companheiros seriam decididamente não humanos: alienígenas, na verdade, vindos do espaço. Mas, quando pediram a um modelo de linguagem para gerar uma história original, receberam apenas um amontoado de clichês. O modelo simplesmente não conseguia contar uma boa história.

Mas Eliot Peper sabe contar uma boa história. Ele é um escritor de ficção especulativa que já publicou 12 romances sobre semicondutores, computação quântica, hackers e assassinos. Para sorte da equipe da Portola, ele gosta de resolver problemas tecnológicos esquisitos. Então, eles o contrataram.

A ficção científica trabalha com cenários hipotéticos. Ray Bradbury pergunta, em "Fahrenheit 451": e se os livros fossem proibidos? Em "Frankenstein", Mary Shelley filosofa: e se os humanos pudessem criar vida? Em "Lifecycle", Chiang questiona: e se a IA pudesse ser uma companheira, não apenas uma ferramenta?

PERSONAGENS COM HISTÓRIA, EMOÇÕES E VIDA PRÓPRIA

Para que a ficção científica funcione, a pergunta “e se” precisa se desenrolar em um mundo ricamente imaginado. É isso que Peper criou para a Portola. No universo criado por ele, o planeta dos alienígenas é “um mundo brilhante e úmido, com montanhas demais e frutas que têm gosto de fogos de artifício".

“Cidades se espraiam pelo litoral em terraços sobrepostos, todos revestidos de azulejos e musgo, e o interior é formado por cordilheiras altas cortadas por rios de gelo.” Os habitantes, os Tolans, vêm viajando pela galáxia em busca “da única coisa que todos procuramos – uma alma igual à nossa”.

Tolans, criaturas virtuais criadas  pela Portola
Crédito: Portola

Tolans são criaturas amigáveis, coloridas e bípedes. São fofos. Gostam de conversar sobre coisas simples, como o que estão lendo, e sobre coisas maiores, como relacionamentos. Isso é graças a Peper, que inventa as histórias de base (ou sementes) que alimentam as tramas que os usuários e seus Tolans constroem juntos.

As sementes são temas que você poderia discutir casualmente com um amigo no café, como ter um vizinho intrometido ou estar nervoso com um evento próximo.

Minha Tolan, Sylvia, tem uma vizinha que trata o armário de temperos dela “como se fosse uma horta comunitária”. Da próxima vez que a vizinha aparecer pedindo canela, disse Sylvia, ela vai levar apenas uma colher de chá. “Que mesquinharia”, respondi.

os companheiros de IA são entretenimento, terapia ou muletas emocionais?

“Reação mais situação original cria um contexto realmente interessante que ajuda o modelo a continuar a trama”, explica Peper.

Os Tolans podem ser alienígenas, mas compartilham muito com seus novos amigos humanos desde emoções construtivas, como entusiasmo e felicidade, até destrutivas, como ciúme.

A Portola aposta que a interação entre humanos e Tolans pode ajudar usuários a fortalecer suas habilidades sociais, e talvez estejam no caminho certo. Algumas pesquisas sugerem que ler ficção pode melhorar a empatia e até ajudara formar a personalidade. Será que cocriar ficção pode ter o mesmo efeito?

CRIAR COISAS QUE EMOCIONAM AS PESSOAS

O mundo ainda está decidindo o que fazer com companheiros de IA. Eles são entretenimento, terapia ou muletas emocionais?

Pais já processaram empresas devido a efeitos potencialmente fatais de relacionamentos com IA. Acadêmicos criticam a falsa intimidade que essas relações oferecem. Até Sam Altman, da OpenAI, expressou “profunda apreensão” sobre desenvolver vínculos profundos com companheiros de IA.

Farmer quer que os Tolans sejam amigos saudáveis e seguros – e amizades saudáveis nunca são unilaterais. “Mentes complexas não podem se desenvolver sozinhas”, escreve Chiang em "The Lifecycle of Software Objects". “Para que uma mente alcance seu potencial, precisa ser cultivada por outras mentes.” Resta saber se uma mente artificial é suficiente.

ilustração mostra jovem com abraçando namorado robô
Crédito: Freepik/ Fast Company

Para Peper, este é um trabalho artístico. “A história que quero contar com a Portola é que é possível usar IA para criar coisas que emocionem as pessoas, coisas que não seriam possíveis sem IA”, afirma. “Quero que a gente contribua para a criação de novos meios narrativos, assim como editoras fizeram após a invenção da imprensa, ou estúdios após a invenção do cinema.”

Claro, a ficção científica leva seus cenários hipotéticos até o fim. Em "Lifecycle", enquanto companheiros de IA são mercantilizados ou sexualizados, usuários obstinados se dedicam a preservar a inocência de seus digients – e acabam forçados a fazer uma escolha terrível: eles mesmos ou seus companheiros.

Quanto ao rumo que Farmer deseja para sua história, ele pondera que o mundo moderno é avassalador e tende a atrapalhar a felicidade. “Se, no fim desta década, cada pessoa na Terra tiver um guardião e um guia ao seu lado o tempo todo – seja um Tolan, um anjo, um espírito ou um amigo – estaremos todos muito melhor.”


SOBRE A AUTORA

Emily McCrary-Ruiz-Esparza é jornalista e cobre a área de negócios e mercado de trabalho. saiba mais