Violência contra a mulher: a detenção do “Calvo do Campari” e o alerta sobre a machosfera
Discurso de ódio contra mulheres cresce na internet brasileira, enquanto o número de feminicídios bate recorde em 2025

Um homem entra na escola onde trabalhou, normalmente, e mata duas professoras e ex-chefes. Ele não gostava de ser liderado por mulheres.
Um rapaz entra em uma pastelaria com duas armas engatilhadas e atira na atendente, sua ex-namorada. Ele não aceitava o fim do relacionamento.
Um jovem atropela uma mulher e arrasta seu corpo por mais de um quilômetro. Ele não queria que ela conversasse com outros homens.
Filme de terror? Série de true crime? Não. São pílulas de realidade da última semana no Brasil, país onde quatro mulheres morrem por dia vítimas de feminicídio.
Em meio aos casos brutais e registrados online, outra notícia chamou atenção do público: o influenciador Thiago Schutz foi detido após ser acusado de agressão e tentativa de estupro pela namorada. Schutz, conhecido na web como “Calvo do Campari”, é dono do canal Manual Red Pill Brasil, movimento que ganhou espaço nas redes sociais do país.
Pesquisa do Laboratório de Estudos de Internet e Redes Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NetLab) mostra que, no YouTube, o ecossistema de vídeos do qual Schutz faz parte – a tal “machosfera” – teve 88% dos seus conteúdos publicados entre 2021 e 2024, a maior parte no final do ano passado.
A popularidade do tema segue em alta. O Netlab encontrou mais de 7,8 mil canais brasileiros sobre esse assunto, que acumulam 4,1 bilhões de visualizações e 23 milhões de comentários.

A pseudofilosofia “red pill” prega que homens são vítimas da dominação feminina e da tomada feminista de poder na sociedade. A filosofia é só uma das partes da machosfera, composta de diferentes comunidades voltadas a “defender a masculinidade de verdade” e disseminar a misoginia.
Essas comunidades explodiram de tamanho no Brasil nos últimos anos. Pesquisa do Laboratório de Estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Públicas (DesinfoPop) da Fundação Getulio Vargas mostrou que, só nos grupos abertos do Telegram, houve alta de 600% no número de usuários de 2019 para 2025.
Apenas nesse aplicativo de mensagens, a machosfera tem mais de 220 mil usuários ativos e engajados – com ênfase no aumento de grupos voltados exclusivamente a difundir misoginia e discurso de ódio contra mulheres, que mais do que triplicou desde 2021.

Nesse mesmo período, os casos de feminicídio no Brasil aumentaram em 10,8%, indo na contramão da queda de 10% dos registros totais de homicídios no país, como mostra o Atlas da Violência 2025 do Ministério da Justiça.
Só na cidade de São Paulo, o número de feminicídios atingiu o recorde histórico de alta nos 10 primeiros meses de 2025, 71% maior do que todo o ano de 2023, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado.
Houve alta também nos casos de violência contra as mulheres. “Não dá para dizer que é coincidência”, afirma a coordenadora do NetLab, Luciane Leopoldo Belin. A pesquisadora foi responsável por analisar os canais do YouTube no estudo feito em parceria com o Ministério das Mulheres.
HOMEM DE VALOR – E QUAIS VALORES
A misoginia e o ódio a mulheres se esconde por detrás de discursos motivacionais e de autoajuda. Não é à toa que boa parte dos influenciadores desse espaço preferem se apresentar como coaches e usam a linguagem da promoção do “desenvolvimento masculino” para atrair a audiência.
De acordo com o estudo do NetLab, o termo “homem de valor” é o mais usado em títulos de vídeos dos principais canais da comunidade. Aqui é um duplo uso: o valor mencionado é o Valor Sexual de Mercado (VSM), indicador difundido pela machosfera que mede homens e mulheres pelo seu nível de “atratividade”.
Alguns fatores influenciam o VSM da mulher, como a beleza física e a idade (a machosfera tende a enaltecer mulheres entre 18 e 27 anos). Já o VSM do homem, segundo o pensamento red pill, pode ser medido a partir do sucesso profissional e financeiro, bem como pela beleza e a força física, a autoconfiança e o poder emanado.

Para um homem “aumentar” seu VSM, ele precisa, basicamente, acumular riqueza, ser bem-sucedido na carreira, ter disciplina e poder com relação à mulher, além de estar “no shape” (gíria usada para falar dos homens que vão à academia e são musculosos).
Na machosfera, é possível encontrar influenciadores que agem como se fossem coaches para todas essas áreas e até para nichos ainda mais específicos. Há aqueles que ensinam sobre relacionamentos, outros que falam sobre criptomoedas, os que tratam de carreira e até mesmo os que promovem o estilo de vida fitness.
“A lógica do coach impulsiona o fenômeno do red pill e de outros lados da machosfera. Existe uma crise da masculinidade e esses canais preenchem essa lacuna com informações sobre desenvolvimento masculino. Eles vendem cursos, mentoria, ensinam técnicas. Têm uma linguagem educativa, o que é mais sedutor para o público”, diz Luciane.
MODELO DE NEGÓCIO
Os nomes de destaque da machosfera não apenas se utilizam do discurso dos coaches de auto-ajuda, eles também usam o seu modelo de monetização. Por meio da venda de cursos, livros digitais, audiolivros e até espaços de mentoria, esses criadores de conteúdo lucram com a misoginia.
Schutz, por exemplo, cobra R$ 1 mil por uma hora de mentoria. A média de valores de combos e e-books e cursos varia de R$ 147 a R$ 397. Há também aqueles que cobram por assinaturas para vídeos e aulas – entre R$ 12,50 a R$ 149 ao mês.
No Telegram, Julie Ricard, que conduziu o estudo do DesinfoPop, analisou grande quantidade de links de vendas de produtos e de materiais. Foram mais de 20 mil tipos de links voltados para a monetização.
Em uma das subcomunidades, dedicadas às práticas de #nofap – retenção seminal, ou seja, prática de o homem não se masturbar para "manter a testosterona em alta” –, mentores ganham R$ 300 por mês para ajudar outros homens a manter o foco nessa atividade.
Os algoritmos de recomendação proporcionaram solo fértil para a machosfera crescer e se espalhar.
Há vendas de conteúdos como “cursos de hebraico maçônico”, outros ligados à maçonaria, à filosofia e à proteção ao direito dos pais. É uma mistura bem heterogênea de infoprodutos. Na pesquisa da FGV, eles encontraram links para plataformas como Mercado Livre, Hotmart, Monetizze, Eduzz, PerfectPay e para canais próprios de workshop e aulas virtuais.
Na rede de vídeos, o dinheiro também flui livremente para os influenciadores da machosfera. De acordo com o NetLab, 80% dos vídeos tinham alguma fórmula de monetização, seja com anúncio na plataforma, divulgação de produtos ou via Super Chat.
Luciane monitorou oito canais específicos de conteúdo misógino e calculou que as páginas arrecadaram mais de R$ 68 mil por meio do Superchat (recurso nativo do YouTube que permite aos espectadores pagarem para destacar suas mensagens ao vivo) apenas com as lives.
Uma das formas de reduzir esse tipo de discurso das redes, na visão das pesquisadoras, é seguir o dinheiro e fechar a torneira. “As plataformas deveriam agir para que esses grupos, que promovem discurso de ódio, não sejam monetizados”, diz a coordenadora do NetLab.
O COFRE ABERTO DAS REDES
Se a misoginia foi transformada em produto lucrativo, as redes sociais também são culpadas. Os algoritmos de recomendação, bem como a estrutura dos aplicativos que beneficia o engajamento acima do conteúdo, proporcionaram solo fértil para a machosfera crescer e se espalhar entre audiências vulneráveis.
Com a justificativa de tratar sobre “desenvolvimento masculino”, "autoconfiança masculina” e “masculinidade de verdade”, o discurso da machosfera capta atenção desde os mais jovens – que têm dúvidas de como se portar em relacionamentos –, até pessoas mais velhas, que tiveram frustrações com mulheres.
A misoginia e o ódio a mulheres se esconde por detrás de discursos motivacionais e de autoajuda.
Aqui, vale frisar o apelo que a comunidade tem junto ao público de homens divorciados com mais de 40 anos. São pessoas que passaram por processos de divisão de bens e de guarda de filhos. Dentro da variedade de influenciadores, há advogados e ativistas dos “direitos dos homens” que usam o espaço para esbravejar contra o sistema jurídico que “favorece mulheres”.
De acordo com o NetLab, 32% dos canais tentam desacreditar, atacar ou difundir desinformação sobre normas jurídicas. Críticas à lei Maria da Penha são feitas com o viés de “contar a verdade que está por detrás da lei”.
O que as pesquisas mostram é que a machosfera é engajada. Os grupos são ativos diariamente, com comentários e conversas. No YouTube, os conteúdos têm em média 54,2 mil visualizações e 302 comentários por vídeos.
No Shorts, a média é de 73,7 mil, de acordo com a pesquisa do NetLab. No Telegram os números são igualmente altos. Alguns dos grupos têm mais de um milhão de conteúdos trocados - entre comentários, links e memes.

Os números alimentam o algoritmo de recomendação, num ciclo que se exponencializa e se potencializa. As poucas vezes em que grupos passam por moderação no Telegram acontecem por conta de compartilhamento de imagens pornográficas.
O aplicativo funciona seguindo as exigências da lei brasileira, que determinam que as plataformas atuem em casos de imagens pornográficas e de cunho sexual. Mas eles já têm um plano B, caso o banimento ocorra.
“Mandam links avisando qual é o ponto de encontro, para mandar a comunidade para outro grupo. Os esforços de moderação, que, obviamente, são insuficientes, ainda passam por essas dificuldades”, diz Julie.
A lógica do coach impulsiona o fenômeno do red pill e de outros aspectos da machosfera.
Os influenciadores fazem algo parecido para evitar que conteúdos que saíram do ar no YouTube fiquem “perdidos”. Em suas páginas oficiais, deixam espaço para os vídeos “censurados” (que chamam de “proibidões”).
Thiago Schutz, por exemplo, tem uma plataforma própria, fechada para usuários pagantes, o “Cofre Secreto”. Nesse espaço, que a redação da Fast Company Brasil conseguiu acessar, há pastas para os podcasts tirados do ar, bem como para um teste de bot de GPT que se faz passar pelo coach red pill.
Ainda assim, a pesquisadora da Netlab afirma que as plataformas não fazem um trabalho diligente com relação a estes vídeos. Ela explica que, em muitos casos, discurso de ódio direto são deixados no ar no YouTube e se replicam para outras redes, como TikTok.
Diz a recomendação do Ministério das Mulheres (em parceria com o NetLab): “é essencial que plataformas digitais adotem práticas mais rigorosas para evitar que influenciadores transformem ódio e desprezo às mulheres em um negócio lucrativo."
DO "RAGE BAIT" AO ÓDIO REAL
Em um primeiro momento, a machosfera fura a própria bolha a partir do “rage bait” (isca de ódio), palavra que foi escolhida como termo do ano pelo dicionário de Oxford esta semana, que explica o uso de conteúdos polêmicos para chamar atenção.
O próprio Thiago Schutz viralizou e se tornou o “Calvo do Campari” por causa de um vídeo de 2023 no qual dizia que o homem não deve se curvar à vontade feminina. O influenciador usou um exemplo pessoal: quando sai para um encontro, ele não pede a cerveja que a parceira quer, mas a bebida destilada que ele prefere.
Em outro vídeo, o influenciador diz que mulheres só têm três atributos importantes para adicionar a um relacionamento: beleza, vestimenta e comportamento.
Schutz, como vários outros influenciadores da machosfera, publica e-books e manuais de comportamento. Uma das suas publicações é um e-book de 172 páginas noqual ele lista (e explica, dando o nível de “perigo”) 35 comportamentos femininos que “podem arruinar os homens modernos”. Fazem parte da lista: “ser mãe solteira", “ser intercambista (ou querer ser)”, “competir com o homem” e “ir muito em festas”.

Por trás das críticas, há a ideia de que as conquistas femininas das últimas décadas – como independência financeira, assumir cargos públicos ou sair de casa livremente – fez mal para o desenvolvimento dos homens e da sociedade. O NetLab mostra que 44% dos canais da machosfera no YouTube defendem explicitamente a submissão das mulheres.
“Eles confrontam os avanços dos direitos da mulher, dizendo que tudo o que foi conquistado até agora não serve para a sociedade e prejudica os homens. É um tipo de discurso de ódio", afirma Luciane.
No dia a dia dos canais do Telegram, os grupos se mantêm ativos a partir da troca de memes, mensagens motivacionais e notícias falsas – formas facilitadas pelo acesso às redes sociais de compartilhar o ódio e banalizar a violência.
Em um dos grupos do aplicativo, o meme compartilhado de um galo triste se uma frase “eu 1 dia sem estuprar” teve 18 curtidas, foi visualizado por 2,6 mil pessoas e recompartilhado por centenas.
em muitos casos, discurso de ódio direto são deixados no ar no YouTube e se replicam para outras redes.
Em parte, a linguagem utilizada pelas comunidades é codificada para fugir dos filtros automáticos das redes sociais. Mas as siglas e derivações servem também para estreitar os laços da comunidade, já que permitem que as pessoas se reconheçam (novamente, uma dinâmica comum das redes sociais).
Mães solo são chamadas pela sigla “Msol”; mulheres sexualmente ativas são “carrossel” ou “corrimão”; mulheres gordas são “peppa pig”. No YouTube, os influenciadores e comentadores evitam usar palavras de baixo calão, mas apertam o acelerador em outros termos degradantes como "burra” e “vagabunda”.
No Telegram, onde as mensagens são criptografadas e não analisadas por filtros, a situação é um pouco mais explícita, com violência verbal. Mulheres são “carrossel de pica”, pessoas trans são “aberrações da natureza". Há compartilhamento de links para grupos neonazistas.
Tudo isso é coberto por um véu de humor e de camaradagem entre os participantes. Numa das descrições do Telegram há a mensagem: “em caso de investigação criminal, declaro que fui introduzido neste grupo por terceiros, amo mulheres e trato como se fosse gente normal”.
A pesquisadora Julie Ricard conta que se surpreendeu com o nível de ódio direto e diverso compartilhado nesses espaços. “Várias mensagens são explicitamente violentas, outras usam humor de forma disfarçada. O ocorrido com o ‘Calvo do Campari’ personifica o risco da ideologia red pill se traduzir em violência física", afirma Julie.
PARA MIM VOCÊ NÃO NEGA
A ex-namorada de Thiago Schutz, que o denunciou por violência doméstica, mostrou um vídeo do ocorrido entre os dois.
Na gravação, ouve-se o influenciador gritando “para mim você não nega” e “pode chamar a polícia” enquanto a garota dizia para ele ficar longe e pedia por socorro. Ela foi alvo de, no mínimo, 11 agressões físicas, de acordo com o laudo pericial da polícia.
As análises dos canais de YouTube da machosfera mostram que 15% dos conteúdos desses canais justificam abusos e violências contra outras mulheres.

Um dos discursos usados é minimizar o problema de violência de gênero no país e alegar que a maioria das mulheres fazem falsas acusações de estupro. Mesmo que os dados oficiais mostrem que o Brasil é um país onde 187 estupros de mulheres acontecem por dia.
O próprio Schutz, em seu livro “Manual Red Pill 2.0”, tem um capítulo voltado para explicar o que o homem deve fazer caso seja acusado falsamente de agressão e estupro. Não é só o material dele que conta com esse tipo de conteúdo. Existem até manuais de relacionamento que explicam que o “não” da mulher para o sexo significa que ela “na verdade quer”.
É a partir dessas informações e desse olhar que milhares de brasileiros estão encontrando não só uma comunidade online, mas um espaço de construção de identidade e de pertencimento.
Uma bolha que não poderia estar mais longe da vida real. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025 mostram que foram registrados 87,5 mil casos de estupro no Brasil no ano passado (média de 239 por dia), 25,8% mais do que em 2020. É o maior número de estupros dos últimos anos.

Desse total, 76,8% das vítimas eram crianças e adolescentes até 14 anos. Quase 68% dos estupros aconteceram dentro de casa. Outra pílula de informação: 80% das mulheres assassinadas no Brasil no último ano foram mortas por companheiros ou ex-companheiros.
E assim as semanas continuam. Na noite de quinta-feira (dia 4), em uma cidade da Grande São Paulo, um homem saiu do carro e matou uma mulher no meio de uma rua residencial. Ele não aceitava o divórcio, pedido em 2022.
Na manhã daquele mesmo dia, na região de Ribeirão Preto (no interior paulista), um homem voltou para casa e esfaqueou a mulher. Ele não queria se separar. Ela avisou os vizinhos que o ex a estava perseguindo. Ela pediu ajuda. Ela morreu dentro de casa. Os filhos estavam na escola. Mais uma semana no Brasil.