Por que a Starbucks não consegue recuperar o espírito que a tornou um fenômeno
A trajetória de Schultz, a chegada de Brian Niccol e o contraste com a estratégia de James Daunt revelam como o futuro da Starbucks depende de recuperar a conexão entre baristas e clientes

Em 1983, Howard Schultz era funcionário da Starbucks, uma pequena rede de cafeterias que vendia principalmente grãos de café (e nenhuma bebida), quando foi enviado a Milão para uma feira comercial. Ao observar os italianos frequentando seus cafés locais, Schultz se encantou com o que viu, descrevendo como um “senso de comunidade, uma verdadeira conexão entre o barista e o cliente”.
Alguns anos depois, após Schultz convencer os donos da Starbucks a lhe venderem a empresa, o novo proprietário tentou construir esse mesmo tipo de conexão nos Estados Unidos.
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Para isso, Schultz sabia que precisava cuidar de seus funcionários. Ele os chamava de “parceiros”, não funcionários, um símbolo de uma relação de trabalho mais colaborativa. Ao longo dos anos, a Starbucks ofereceu benefícios que eram incomuns para trabalhadores de meio período no setor alimentício, como plano de saúde e auxílio para educação universitária.
Hoje em dia, porém, a Starbucks parece ter perdido a reputação de cuidar bem de seus funcionários.
Sem dúvida, pelo menos em parte, isso se deve ao fato de Schultz ter deixado o cargo de CEO diversas vezes, retornando quando a empresa enfrentava dificuldades sob a gestão de seus sucessores. Há alguns anos, após assumir interinamente, Schultz chegou a fazer uma "turnê de escuta", visitando lojas em todo o país para descobrir como a empresa havia se desviado do caminho.
A diretoria da Starbucks, e até mesmo o próprio Schultz, se animou quando a companhia contratou Brian Niccol, ex-CEO do Chipotle, para assumir o comando. No mundo do fast food e dos restaurantes casuais, Niccol era uma estrela. Recentemente, ele havia concluído uma grande reestruturação no Chipotle, empresa que viu suas vendas dobrarem no primeiro ano de Niccol como CEO, juntamente com uma grande valorização das ações.
Todos se perguntavam a mesma coisa: será que Niccol conseguiria fazer o mesmo com a Starbucks?
ESPERANÇA DE MUDANÇA?
Niccol prometeu resgatar as raízes da Starbucks, com um foco renovado em servir “o melhor café” e um plano para modernizar as lojas e torná-las mais acolhedoras. O executivo também trouxe de volta os favoritos dos clientes, como os balcões de condimentos, para que eles tivessem mais controle sobre a personalização.
Mas, à medida que mais detalhes do plano de reestruturação de Niccol vieram à tona, a preocupação aumentou. Os baristas seriam obrigados a seguir um código de vestimenta muito mais rigoroso. Eles receberam um conjunto de diretrizes, até mesmo um roteiro, detalhando suas interações com os clientes. Os baristas foram instruídos a escrever algo “autêntico” em cada copo de cliente, sob ameaça de punições caso não o fizessem.
Leia mais: De volta às origens: Starbucks lança plano para recuperar o charme perdido : Por que a Starbucks não consegue recuperar o espírito que a tornou um fenômenoEssa é a falha fatal nos planos de reestruturação de Niccol. O ambiente de trabalho evoluiu, e a gestão autoritária não é mais eficaz, pelo menos não a longo prazo. Isso é especialmente verdadeiro no setor de serviços, em que a confiança permite que os funcionários se conectem com os clientes.
Além disso, as políticas mais recentes de Niccol são antitéticas à forma como Schultz construiu a Starbucks em primeiro lugar — uma empresa que se orgulhava de colocar seus funcionários no centro de tudo o que fazia.
EXPERIÊNCIA SERVIU DE AVAL
Em contraste, Niccol e sua equipe se beneficiariam ao analisar de perto uma história recente de recuperação, liderada por um CEO que, assim como o executivo, tinha experiência em ressuscitar uma marca em declínio: James Daunt, da Barnes & Noble.
Ex-banqueiro de investimentos que se tornou dono de livrarias, Daunt assumiu o comando da maior rede de livrarias dos Estados Unidos em 2019, que vinha em declínio constante há anos. Desde que Daunt assumiu, a Barnes & Noble experimentou um ressurgimento, levando à expansão com dezenas de novas lojas em 2023.
Essa não foi a primeira recuperação bem-sucedida de Daunt. O empresário britânico fez algo semelhante no Reino Unido, onde revitalizou outra rede de livrarias em dificuldades, a Waterstones.
Então, como Daunt conseguiu que o raio caísse duas vezes no mesmo lugar? Sua estratégia principal era simples: dar poder aos gerentes locais das lojas.
“Nós damos três passos para frente e um para trás”, disse Daunt certa vez em uma entrevista ao The New York Times. “O passo para frente é o meu constante incentivo e pressão para que as próprias lojas tenham total liberdade para fazer absolutamente o que quiserem — como exibir seus livros, precificá-los, organizar suas seções, qualquer coisa. Essas liberdades são difíceis se você vivesse em um mundo muito rígido, onde tudo era ditado.”
Em essência, Daunt transformou as lojas locais da Barnes & Noble, e antes delas as da Waterstones, em livrarias independentes. A estratégia funcionou por causa da confiança que ele depositou em sua equipe e do poder que lhes concedeu.
AS PESSOAS PERDERAM O PROTAGONISMO
É claro que há mais de uma maneira de revitalizar uma empresa. Niccol obteve sucesso no Chipotle. Mas o foco na eficiência e nas políticas em detrimento das pessoas é diametralmente oposto ao sonho de Schultz para o Starbucks: aquela visão de inspiração italiana de conexão local entre barista e cliente.
O objetivo geral de Niccol de resgatar as raízes da Starbucks deve ser louvável. Mas a capacidade da empresa de proporcionar essa experiência de conexão dependerá das pessoas que servem as bebidas. Isso exigirá a reconstrução de uma cultura na qual os funcionários da Starbucks se sintam apoiados e valorizados, e não ameaçados.
Se a Starbucks conseguir voltar a cuidar de seus funcionários, eles cuidarão dos clientes. E a recuperação acontecerá naturalmente.