Como seria uma nave mais veloz que a luz? Segundo a ciência, seria como a Enterprise
Décadas depois de ser descartada como fantasia, a ideia do motor de dobra ganha um projeto matematicamente viável

A USS Enterprise era um sonho impossível moldado em fibra de vidro. Criada para o seriado "Jornada nas Estrelas" (veiculado pela primeira vez entre 1966 e 1969), parecia uma nave saída diretamente da imaginação de seu criador, Gene Roddenberry: dois naceles – aqueles longos e reluzentes pods de propulsão sustentados por elegantes pylons – estendiam-se a partir de um disco central, abrigando os motores que permitiam ao capitão Kirk e sua tripulação viajar pelo cosmos.
Dentro desses naceles, imaginavam os criadores da série, estava o segredo que tornava essas viagens possíveis: um motor de dobra capaz de enrugar o próprio espaço-tempo, comprimindo o universo à frente da nave e expandindo-o atrás dela, permitindo deslocamentos mais rápidos que a luz não pela velocidade, mas pela geometria.
Por décadas, físicos descartaram a ideia como um belo absurdo – um delírio de designers de cenários. Mas agora a matemática finalmente alcançou o sonho.
Harold “Sonny” White, engenheiro mecânico e especialista em física aplicada que trabalhou em conceitos de motor de dobra no Laboratório de Física de Propulsão Avançada da NASA, publicou um artigo revisado por pares na prestigiosa revista "Classical and Quantum Gravity". Nele, propõe um novo projeto de motor de dobra que, por coincidência, se parece muito com a Enterprise.

Quando White e seus colegas chegaram a um desenho capaz de curvar o espaço-tempo sem colocar a tripulação em risco, a geometria ideal que emergiu foi a de dois pods de propulsão dispostos ao redor de uma zona central habitável. Ou seja: a Enterprise.
Talvez isso aconteça porque existam apenas algumas formas pelas quais a física permite organizar energia exótica de maneira eficiente. Os designers de produção de "Jornada nas Estrelas", guiados apenas pela intuição e pela estética dos anos 1960, podem ter chegado por acaso a uma solução rara e próxima do ideal.
É como se alguém tivesse desenhado o carro perfeito em 1920 sem saber nada sobre aerodinâmica – e, um século depois, a física dissesse: “na verdade, você estava certo”.
O MOTOR DE DOBRA
Segundo White e seus colegas, o modelo matemático original de um motor de dobra imaginava uma nave envolta por um anel contínuo de energia negativa, uma forma bizarra de matéria que funciona como a gravidade ao contrário, empurrando o espaço em vez de atraí-lo.
Esse modelo foi proposto em 1994 pelo físico Miguel Alcubierre, depois de assistir a episódios de "Jornada nas Estrelas" e se perguntar se a ciência poderia realmente funcionar.
A geometria teórica permitiria que um objeto se deslocasse mais rápido que a luz ao deformar o espaço ao seu redor, mas a ideia trazia problemas quase insolúveis para qualquer engenheiro que tentasse construí-la.
O avanço de White foi mais simples. Em vez de tentar fazer funcionar o anel contínuo de Alcubierre, ele formulou outra pergunta: e se o anel de energia fosse dividido em tubos separados, como pods de propulsão, organizados ao redor da nave?

Essa pequena mudança geométrica – de um anel contínuo para múltiplos cilindros – altera completamente o comportamento da física dentro da chamada bolha de dobra. A matemática se torna administrável. O interior da nave pode permanecer plano e seguro. As forças perigosas ficam confinadas aos naceles, longe da tripulação.
“Os resultados deste estudo sugerem uma nova classe de geometrias para bolhas de dobra”, explica White. Ao organizar a matéria exótica nesses pods específicos, engenheiros poderiam, em teoria, manter um interior completamente estável e calmo, enquanto a geometria externa lida com a violenta deformação do espaço.
Os designers de produção da série podem ter chegado, por acaso, a uma solução próxima do ideal.
Viajar mais rápido que a luz continua sendo uma possibilidade teórica – ainda que plausível –, dependendo de fatores como a produção do combustível necessário para isso. Se algum dia acontecer, será algo distante, talvez a muitas gerações de nós.
Ainda assim, o artigo de White oferece um projeto matemático com implicações práticas para design e engenharia. Se um dia for construído, seu conceito resultará em algo muito parecido com a nave favorita de gerações de fãs de ficção científica.
CIÊNCIA INSPIRADA NA FICÇÃO
A lista de tecnologias fictícias que hoje fazem parte do cotidiano é tão longa que chega a ser exaustiva. Algumas levam poucos anos para se tornarem reais; outras demoram décadas entre o sonho e o dispositivo.
Em 1945, Arthur C. Clarke publicou um artigo técnico propondo satélites geoestacionários para retransmissão de comunicações. Dezenove anos depois, o satélite Syncom 3, da NASA, transmitiu os Jogos Olímpicos de Tóquio para os Estados Unidos, cumprindo a profecia. Clarke também teorizou as velas solares em seu conto de 1964, “Sunjammer”.
Muito antes disso, em 1933, H.G. Wells imaginou chamadas de vídeo em telas de vidro no livro "A forma das coisas que virão: o estado mundial e a era da frustração" ("The Shape of Things to Come"). Foram necessários 87 anos para que a era do Zoom nos deixasse cansados delas.

E não é a primeira vez que isso acontece com "Jornada nas Estrelas". A série apresentou ideias que, muitas décadas depois, se transformaram em designs e tecnologias que ajudaram a impulsionar a humanidade.
Não apenas portas automáticas, mas telefones celulares, tablets com tela sensível ao toque, interfaces digitais, assistentes de IA ativados por voz, dispositivos de escaneamento médico e realidade virtual.
"Jornada nas Estrelas" não apenas previu o futuro: tornou-se o modelo que engenheiros efetivamente seguiram para projetá-lo.