Santo Agostinho e a enxurrada de versões visuais de mundos que nunca existiram

Santo Agostinho e versões que não existiram
Créditos: DAJ e Vladimir18 via Getty Images

Fred Gelli 5 minutos de leitura

Durante séculos, na dúvida, repetimos o mantra de Santo Agostinho como se fosse uma lei universal: ver para crer, com a visão ocupando o posto do sentido que nos mostrava a verdade. O olho, esse equipamento absolutamente genial, funcionando como um portal que nos dá acesso à realidade, com suas cores, nuances, formas e fatos.

Só que parece que esse tempo acabou.
E, talvez, de fato nunca tenha existido.

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A visão sempre foi o sentido que mais nos traiu. O mais vulnerável. O mais manipulável. Você acha que uma coisa está perto, ela está longe. Acha que é azul, é cinza. Acha que está em pé, está de cabeça para baixo. O cérebro faz malabarismo com luz e contraste o tempo inteiro. Por isso só existe ilusão de ótica; não existe ilusão olfativa, não existe ilusão tátil. Ninguém passa a mão em lixa achando que era seda, ninguém sente cheiro de fumaça achando que é jasmim. Dá para imaginar quantas decisões históricas foram equivocadas pois quem as tomava confiava  apenas no que enxergava?

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E se já era complicado confiar no que víamos antes, agora, com as inteligências artificiais generativas, estamos chegando a um ponto em que precisamos desconfiar de tudo que nos é oferecido! Quando o Papa Francisco apareceu usando um casaco acolchoado branco, com ares de Balenciaga, em uma imagem que correu o mundo, tudo parecia absolutamente real e possível, mesmo com uma pitada de estranheza. Lembro que foi engraçado e inusitado. Talvez uma das primeiras pegadinhas das IAs. A partir dali, não parou mais.

Reprodução

Hoje, toda semana aparecem novos modelos que se juntam ao Gemini, DALL·E, Nano Banana, Midjourney, entre tantos outros, competindo pelo posto de algoz do nosso sentido supremo, cada vez mais desmoralizado. Das fake news mais bizarras, com motivações diversas, à onda de meninas algorítmicas que, em tom quase erótico, se oferecem como assistentes pessoais, começamos a viver em uma era em que parece que a realidade, o fato, a verdade se diluem em uma enxurrada de versões visuais de mundos que nunca existiram.

Se a visão sempre foi o sentido mais enganável, o que nos resta para checar o que ainda é real? Em que sentidos podemos, de fato, confiar?

O tato, o olfato, o paladar, a audição são hoje uma espécie de fronteira humana, aparentemente oferecendo maior resistência às ambições tecnológicas na manipulação da nossa capacidade de interagir com a realidade. Você pode simular o barulho do mar, mas não a vibração do chão sob o pé descalço. Pode criar a imagem perfeita de um café, mas não o cheiro que invade a cozinha nem o calor da xícara na mão. Pode inventar um jantar inteiro em realidade aumentada, mas não reproduz o gosto ácido de um limão, a textura da manga madura, a crocância da casquinha de pão recém-assado. Pode gerar a voz de qualquer pessoa, mas não recria o ritmo da respiração quando ela está emocionada.

Enquanto não existir cheiro em site, textura em link, sabor em arquivo, ainda teremos um porto seguro, um espaço de verificação. A experiência sensorial continua sendo o nosso detector de realidade. No limite, é o corpo que atesta se algo aconteceu ou não.

A experiência sensorial continua sendo o nosso detector de realidade.

A psicologia contemporânea já deu nome para isso: embodiment, a ideia de que a nossa saúde mental, o nosso senso de identidade e até nossa capacidade de aprender dependem de estarmos, de fato, encarnados, presentes, em relação real com o ambiente. Não é poesia, é neurociência. Quando o corpo participa, a mente floresce, aumentando a chance de presença real.

Por isso assusta ver o quanto as crianças estão sendo empurradas para fora do mundo sensorial. Horas de tela, pouca rua, pouca árvore, pouco chão, pouca aventura. Uma infância que conhece mais pixels do que texturas, mais logos do que cheiros, mais notificações do que silêncios. Essa desconexão não é só um problema educativo, é um problema evolutivo: estamos produzindo gerações que experimentam menos o mundo com o corpo do que com o polegar.

Ao mesmo tempo, a arte, que sempre foi o laboratório radical da experiência humana, já vinha nos avisando faz tempo. Lygia Clark, Hélio Oiticica, Marina Abramović e tantos outros deslocaram o foco da obra do que se vê para o que se vive. A obra que você veste, dança, toca, habita. A performance em que você não é espectador, é corpo presente. Eles já tinham entendido que a visão era pouco, que a verdade da experiência mora em mais dimensões.

Em um mundo em que qualquer coisa pode ser fabricada, a experiência real vira o último recurso de checagem.

No meio desse turbilhão de simulações, parece que a única maneira de saber se alguém é quem diz ser não será pela foto do perfil, nem pelo texto no LinkedIn, nem pelo vídeo perfeito no Instagram; será pela prova oral, pelo corpo ao vivo, pelo encontro. É ver a pessoa tropeçar na própria frase, rir fora de hora, ficar em silêncio, mudar de expressão, suar na mão. É essa imperfeição sensorial que nos devolve a certeza de que há um humano ali.

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Pode parecer melancolia distópica, mas é profundamente pragmático: num mundo em que qualquer coisa pode ser fabricada, a experiência real vira o último recurso de checagem. Quando nada mais for confiável, a gente vai voltar para o que sempre esteve aqui, o conjunto da experiência sensorial, fruto de milhares de anos de evolução, que nos habilitou com a sofisticada capacidade de sentir a realidade, com toda a sua exuberância e sutilezas. Mas, para isso, precisamos abrir mais espaço para vivermos os encontros reais, rompendo, muitas vezes, a preguiça de sair da frente das séries infinitas, dos scrolls viciantes, verdadeiros hipnotizadores digitais.

É preciso investir nos amigos, nos abraços, nas festas, nos esportes, nas relações, nas caminhadas na floresta, nos banhos de mar, no olho no olho e em tudo que nos faz exercitar nossos sentidos, nosso corpo físico, nossas habilidades naturais de interpretar e desfrutar da realidade.E, enquanto isso tudo não couber num prompt, ainda existe esperança.


SOBRE O AUTOR

Fred Gelli é co-fundador e CEO da Tátil Design, consultoria de branding, design e inovação que desenha estratégias e experiências de m... saiba mais