O que uma viagem de bicicleta ensina sobre foco, mente e criatividade

Spoiler: mais do que parece

Bicicleta e a criatividade
Créditos: Airam Dato-on via Pexels

Clive Thompson 3 minutos de leitura

Quando atravessei os Estados Unidos de bicicleta, passei de seis a nove horas por dia pedalando – por quase três meses seguidos.

Isso deixou muita gente curiosa. “O que você ouvia o dia inteiro?”, perguntou uma amiga. “Música, audiobooks, podcasts? Como era a sua playlist?”

“Nada”, respondi.

Ela franziu a testa, como se tivesse entendido errado. “Como assim, ‘nada’?”

“É isso mesmo. Eu não ouvia nada enquanto pedalava”, expliquei.

Deu para ver a mente dela travar. “Como assim… você… você só pedalava? Em silêncio total?”

“Mais ou menos”, respondi, rindo.

“O dia inteiro!?”

“Sim.”

Ela ficou chocada. “Eu enlouqueceria.”

E ela não foi a única. Quase todo mundo que descobria que eu tinha pedalado mais de 6,6 mil quilômetros sem ouvir música, podcasts ou qualquer outro tipo de mídia reagia da mesma forma – incrédulo, quase inconformado.

Aos poucos, comecei a perceber algo curioso. A maioria das pessoas acha assustador atravessar os Estados Unidos de bicicleta, mas consegue imaginar o desafio físico: é puxado, claro, mas é só subir na bike e continuar pedalando que uma hora você chega lá. Elas não querem fazer isso – mas conseguem entender.

Agora, passar o dia inteiro sem consumir mídia nenhuma? Isso simplesmente não entra na cabeça delas. Vai contra tudo o que parece normal hoje. Só que aqui está o detalhe: é muito bom.

Agência Brasil

O SILÊNCIO VALE OURO

Nunca foi uma questão de princípio. Não sou contra tecnologia – muito pelo contrário. Mesmo em viagens de bicicleta, uso bastante o celular: para me orientar, checar a previsão do tempo ou simplesmente perder tempo nas redes sociais. Mas enquanto estou pedalando de fato? Descobri que o silêncio é precioso.

Uma das coisas interessantes do ciclismo é que a mente fica ocupada e livre ao mesmo tempo. Pedalar exige que você tome pequenas decisões o tempo todo – desviar de um buraco, prestar atenção em um pedestre, contornar um vidro quebrado perto do meio-fio. É preciso estar sempre em alerta.

O psicólogo Nick Moore descreve andar de bicicleta como um “estado de foco minucioso”.

O psicólogo Nick Moore descreve andar de bicicleta como um “estado de foco minucioso”. O mundo se reduz a “um espaço de poucos centímetros de largura e milhões de quilômetros de extensão, fora do qual nada existe”. Ainda assim, essas decisões são rápidas e simples e não acabam me deixando mentalmente exausto.

UM BANQUETE SENSORIAL

Ao mesmo tempo, recebemos estímulos por toda parte. Pedalar de um lado a outro do país é um verdadeiro banquete para os sentidos. Ao entrar nas cidades, eu passava por grafites elaborados em túneis ferroviários e ficava observando a arquitetura muitas vezes desgastada das áreas periféricas.

No interior, cruzava com enormes sistemas de irrigação espalhados pelos campos e os via ganhar vida ao amanhecer, soltando nuvens de névoa sobre plantações de trigo e de milho.

Pedalar obriga o cérebro a tomar uma enxurrada de decisões, enquanto contempla o lindo espetáculo do mundo ao redor.

Os sentidos ficam ligados o tempo todo, mas não há estresse – como se o corpo estivesse registrando tudo o que acontece ao redor de forma tranquila.

É uma combinação interessante: pedalar obriga o cérebro a tomar uma enxurrada de pequenas decisões, enquanto contempla o lindo espetáculo do mundo ao redor. Juntas, essas coisas parecem relaxar a camada mais profunda da mente, colocando-a em uma espécie de estado meditativo.

Muitas vezes, eu me pegava refletindo sobre ideias despertadas pelo que via. Em outras, quase sem perceber, estava pensando em algo como um trecho esquecido de um livro que, de repente, voltava a me intrigar.

Tenho a impressão de que esses pensamentos mais profundos surgem justamente por causa desse curioso estado mental triplo do ciclismo. A vigilância mantém o foco, o mundo inspira ideias, enquanto a mente mais profunda trabalha em silêncio – até que, de repente, algum insight vem à tona, como um golfinho saltando da água.

Ouvir música, podcasts ou audiobooks quebraria esse encanto? Impediria esse fluxo de pensamentos? Acho que sim. No dia a dia, não penso em abrir mão da música ou do celular. Mas, na estrada, eu preciso do silêncio.


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