Ativistas interseccionais em risco online e offline

Jovens feministas "trolladas" na internet adotam a tática da “justiça digilante”, que usa meios digitais para lutar por justiça

Crédito: Gaspar Uhas/ Unsplash

Sandra Jeppesen 5 minutos de leitura

No dia 5 de agosto de 2022, a streamer e ativista trans Clara Sorrenti foi presa sob a mira de armas em sua casa em Londres, na província de Ontário, no Canadá. Trolls anti-trans denunciaram falsamente que ela havia matado a mãe e estava planejando invadir a prefeitura a tiros. Clara havia caído em um novo golpe.

Conhecido como “swatting”, o golpe envolve ligar para a polícia para denunciar uma emergência (falsa) de alto risco na casa da vítima, resultando no acionamento de uma equipe da SWAT. Em alguns casos, as vítimas acabam morrendo nas mãos da polícia.

Experiências como a de Clara são recorrentes, segundo os relatos que encontrei na minha extensa pesquisa com ativistas interseccionais.

Ela faz parte de uma nova geração de ativistas digitais, que defende questões de interseccionalidade, ou seja, que traçam conexões entre fatores de preconceito como raça, gênero, sexualidade e assim por diante. Grande parte de seu ativismo é feito online.

Campanhas digitais como #MeToo e #BlackLivesMatter tiveram tanto sucesso, em parte, porque mulheres jovens, negros e a comunidade LGBTQIA+ são usuários bastante ativos nas redes sociais – estão online com mais frequência e interagem mais.

Mas, apesar do sucesso dessas campanhas, os ativistas interseccionais estão cada vez mais em risco, tanto na internet como no mundo real.

CARGA EMOCIONAL

A trollagem online e o swatting vivenciados por Clara ilustram como os ativistas interseccionais sofrem uma forte carga emocional (estresse acima do comum), principalmente por lidar com ataques violentos de trolls.

Também são vítimas frequentes de vazamentos de dados, que tornam suas informações pessoais – como endereço, número de telefone ou local de trabalho – públicas na internet.

O caso de Clara é o exemplo clássico das consequências psicológicas para as vítimas: impactos emocionais graves e contínuos do vazamento de dados, incluindo ter que confrontar comportamentos transfóbicos dos policiais, como usar seu “nome morto” (o nome dado no nascimento) e gênero incorreto.

PRECONCEITOS REPRODUZIDOS POR ALGORITMOS

Um problema mais profundo é que, na internet, nem todos são todos tratados igualmente. A pesquisa demonstrou repetidamente que os algoritmos – códigos que programam a internet – reproduzem preconceitos. Tanto eles quanto o big data que os impulsiona são frequentemente racistas, misóginos ou transfóbicos.

TORNAR INVISÍVEL

Um tipo de viés presente nos algoritmos é conhecido como “shadowbanning”, que é quando uma plataforma limita a visibilidade de usuários específicos sem bani-los por completo. Os ativistas notaram que conteúdos nas redes sociais sobre questões interseccionais frequentemente sofrem shadowbanning.

Tanto os algoritmos quanto o big data que os impulsiona são frequentemente racistas, misóginos ou transfóbicos.

Por exemplo, em 5 de maio de 2021, dia em que muitos canadenses vestiram vermelho para conscientizar sobre a violência contra mulheres indígenas, quase todos os posts no Instagram rela- cionados ao assassinato dessas mulheres sumiram.

O Instagram alegou ter sido um “problema técnico”, mas os usuários disseram que se tratava shadowbanning de conteúdo interseccional de ativismo indígena. No entanto, isso é uma coisa muito difícil de provar.

Também há evidências de que o TikTok praticou shadowbanning em conteúdos interseccionais de ativismo LGBTQIA+, de pessoas com deficiência, de empoderamento feminino e antirracista. Isso, somado ao viés dos algoritmos, pode fazer com que os ativistas interseccionais se sintam invisíveis e suas postagens não viralizem, o que é crucial para campanhas de conscientização.

ESTRATÉGIAS DE RESPOSTA

Uma tática que os ativistas usam para abordar a interseccionalidade online é criar uma “hashtag poderosa”. O movimento #MeToo é um grande exemplo de ativismo que chamou a atenção do mundo todo para o problema do assédio e do abuso sexual.

No entanto, para a escritora egípcio-americana Mona Eltahawy, o #MeToo não parecia ser adequado para ela, como mulher muçulmana. Por isso, criou o #MosqueMeToo, para lançar luz sobre agressões sexuais em sua comunidade, com foco no contexto interseccional de gênero, islamofobia e racismo.

Movimentos como este adicionam novas dimensões interseccionais a hashtags mainstreams, tirando proveito do seu alcance e desafiando suas limitações.

JUSTIÇA DIGILANTE

Jovens feministas "trolladas" na internet adotaram a tática de “justiça digilante”, que envolve o uso de meios digitais para lutar por justiça – nesse caso, contra trolls.

O movimento #MeToo é um grande exemplo de ativismo que chamou a atenção do mundo todo.

Elas aprendem como hackear plataformas de redes sociais para revelar as identidades dos trolls e confrontá-los na vida real. Também os excluem de suas redes sociais pessoais por meio de “hackback”, táticas de hackers usadas contra hackers.

Outro exemplo é o da desenvolvedora de jogos Randi Harper, que foi fortemente trollada por misóginos em um incidente conhecido como GamerGate. Em resposta, Randi desenvolveu o Good Game Auto Blocker (ggautoblocker), que bloqueia usuários que seguem contas com conteúdo misógino no Twitter – o equivalente digital de abandonar uma conversa quando alguém usa discurso de ódio.

SOLIDARIEDADE DIGITAL

Ativistas digitais entendem que as plataformas de redes sociais são projetadas para explorar os conteúdos e dados produzidos pelos usuários. Para combater isso, ativistas hackers interseccionais desenvolveram tecnologias para incentivar a solidariedade, em vez da exploração.

Eles visam empoderar tanto quem dá quanto quem recebe apoio, reconhecendo que todos desempenham ambos os papéis, às vezes precisando de apoio, outras, oferecendo. Isso é frequentemente chamado de ajuda mútua.

conteúdos nas redes sociais sobre questões interseccionais frequentemente sofrem shadowbanning.

A ajuda mútua digital pode se dar por workshops de orientação e compartilha- mento de habilidades que ensinam a novos ativistas marginalizados a programar, promover postagens nas redes sociais, produzir programas de rádio ou escrever comunicados à imprensa.

A solidariedade digital e a ajuda mútua são estratégias importantes de apoio e cuidado que podem auxiliar a combater a forte carga emocional de ser trollado, ter seus dados vazados, sofrer shadowbanning ou preconceito de algoritmos.

MAIS TRABALHO A SER FEITO

Além do ativismo digital interseccional, mais trabalho precisa ser feito pela indústria de tecnologia, forças policiais e movimentos sociais para acabar com o colonialismo, racismo, misoginia e transfobia das interações online, bem como com os impactos devastadores que podem ter na vida das pessoas.

Esse esforço é fundamental para que uma democracia funcione bem e seja inclusiva e diversa, pois visa garantir que a internet esteja disponível de forma igual e segura para todos os cidadãos.


SOBRE A AUTORA

Sandra Jeppesen é professora de mídia, cinema e comunicação na Lakehead University. saiba mais