Irmãos Campana: inovar mesmo é botar o pé na terra
Fernando e Humberto retornaram para o interior e encontraram no cotidiano das plantas, da terra e do tradicional um caminho para a inovação
Em silêncio em meio a plantas nativas, couves, flores, cachorros e adubo natural. Esse é o habitat, o estúdio e a galeria atual dos irmãos Fernando e Humberto Campana. Reconhecidos internacionalmente por suas obras que misturam design e arte, os irmãos têm mais de 35 anos de carreira que virou sucesso ao levar materiais incomuns – como cordas e animais de pelúcia – para o mobiliário.
São dos poucos artistas brasileiros a ter obras no acervo do Museu de Arte Moderna, em Nova York. Trabalham em parceria com Louis Vuitton, Edra e Fendi. Volta e meia, dão as caras no Salão do Móvel, em Milão. Todo esse background poderia apontar para uma dupla de famosos esnobes. Mas o que se vê são dois artistas com os pés (e, às vezes, as mãos) na terra, e a atenção voltada para a palavra do outro.
Avessos a badalações, os Campana estão construindo, juntos, o Parque Campana, em Brotas, no interior de São Paulo. Eles aproveitaram a pandemia para transformar os 20 hectares onde cresceram plantando mais de 15 mil mudas de árvores nativas e pavilhões. Para que será o espaço? “Contemplação e educação”, diz Humberto.
Ambos refletem o passado, mas olham para frente, com foco na tradição e na natureza. “Inovação, hoje, é conseguir uma memória do passado em conjunção com a tecnologia”, diz Fernando. Em entrevista exclusiva à Fast Company Brasil, a dupla fala sobre o passado, o futuro e o presente.
Vocês têm quase 40 anos de carreira. Quais suas reflexões sobre essas décadas e como olham para as próximas?
Humberto – Tudo é reparar erros. Rever o passado reparando erros. Ser mais consciente das atitudes, mesmo sociais, com quem vai se relacionar e com o planeta. É o básico, dentro das condições que a gente tem no Brasil, onde temos 60 milhões passando fome, não tem acesso ao digital. Falo como brasileiro: é preciso reparar os erros do passado. Nossa geração cometeu muitos erros, sem muita consciência. Eu me incluo também. Erros com o uso da água, com o meio ambiente, com tudo.
Fernando – Inovação, hoje, é conseguir ter uma memória do passado muito forte em conjunção com a tecnologia que temos. É criar um ambiente sustentável, com responsabilidade social, com preocupação com o meio ambiente, com a vizinhança. Tudo isso cresce e reflete nos objetos. É a sua conduta de vida numa sociedade. Hoje, quem tem uma área de terra é um tesouro, é uma verdadeira galeria.
Vindo para a nossa realidade, não podemos desmerecer o que fizemos. O trabalho dos designers reflete nas casas representando uma mini galeria, onde a pessoa terá uma casa que vai ter tudo em perfeita sintonia com o meio ambiente, e que ainda abriga uma coleção de necessidades diárias, que vão contar o que foi e o que pode ser hoje.
Como a pandemia mudou o trabalho de vocês?
Fernando – Mudamos muito, tentando reparar coisas que a gente fazia de forma empírica. Como uma cadeira de mangueiras reutilizando plásticos. Podemos trabalhar em outras vertentes da reciclagem.
Humberto – Eu mudei muito. Antes era nômade, viajava muito. A pandemia me fez ficar dentro de casa. Isso me fez voltar a minha cidade natal, Brotas, e a fazer as pazes com ela. Criamos um jardim no nosso sítio que será uma fundação, um parque botânico. A vida me deu tanta coisa, estava na hora de dar de volta. Ensinar as pessoas, educar ambientalmente, porque o interior é um deserto de cana. Plantamos 20 mil mudas de árvores nativas. A ideia é recriar um protótipo de como era a vegetação original e plantar em outros lugares do Brasil.
Fernando – Essa ideia já tinha surgido antes da pandemia. Era uma área que o nosso pai tinha e que ora eu, ora o Humberto, íamos cuidar. Hoje veio a evolução. A tecnologia contribuiu, com técnicas que melhoram a produção de sementes e conseguem voltar com plantas que estavam extintas.
O que deu o start de sair da posição de designers para a de professores?
Humberto – Ensinar não é impor. Estamos fazendo pavilhões verdes, com mandacaru, com cactos. A ideia é ser um lugar de cura. Não tem a intenção de ensinar ou contaminar. A pessoa chega lá em silêncio. É um lugar de contemplação. Talvez a educação seja essa, de olhar para si.
Fernando – E respeito, de saber como aquilo chegou até lá. O que era, como recuperamos. Aquilo é importante para a cidade e para o futuro. Convivi bastante com o interior, convivo até hoje. Porque faz bem voltar para o interior, não é São Paulo mais o núcleo. Hoje em dia, você tem polos de tecnologia e artesanato no interior.
Se fossem entrar no mundo do design em 2022, como fariam? Que tipo de produto e arte criariam?
Humberto – Acho que fazendo o que a gente sempre fez. Desde o início, temos respeito por tradições que estão desaparecendo, com a cultura vernacular. Seja na escolha dos materiais, seja na produção em si. A cadeia produtiva trabalha com manualidade. Fizemos um projeto com a Paola Lenti, no Salão do Móvel, no qual recriamos os padrões de tecido com o resto da empresa. Isso foi feito por imigrantes refugiados na Europa.
Inovação, hoje, é conseguir ter uma memória do passado muito forte em conjunção com a tecnologia que temos.
Fernando – Se tornou uma evolução tecnológica sem grandes impactos no que a Edra fazia. Cada cadeira, cada coleção, era única. Com a nova coleção mantivemos o princípio de utilizar uma mão-de-obra que está em vias de desaparecimento, pessoas que gostam de fazer aquilo, que têm uma sabedoria familiar e ancestral, e colocá-la na realidade. Como fazer aquilo virar um produto.
Pegamos meio século do passado e estamos vivendo a outra metade de século no futuro. Transpor isso é mais fácil. Se começássemos hoje, a gente teria que estudar muito. Se tivesse a sorte de nascer no interior, já seria num interior diferente. Mesmo então, a gente não pegava uma linguagem da nossa época, tentávamos captar o tradicional.
O tradicional e o contemporâneo convivem na obra de vocês. Qual a importância que veem de resgatar esse pensamento? E como fazer isso no mundo de hoje?
Fernando – Hoje em dia, estão voltando com a ideia de que é bonito ter um convívio com a natureza. Que é bonito ter a convivência com a mata, plantar com adubo orgânico. Foi um ato que se perdeu, mas que existia há séculos. No fazer tradicional, já existiam pessoas que faziam peneiras, balaios de milho de bambu, as cerâmicas. Como é bom poder voltar para isso!
Humberto – São objetos que contém afeto e amor. E isso não vai ser descartado igual a um balde de plástico. Tem um valor anímico, de colocar a alma no objeto. Nosso caso é particular, desde o início trabalhávamos com galerias. Nossas peças são limitadas, não era algo que seria usado para jogar fora. As marcas com as quais trabalhamos, como Louis Vuitton, são empresas que pensam na durabilidade. As peças que fizemos, os objetos nômades, vão passar de pai para filho. É a manualidade que se insere. Uma peça precisa contar uma história.
Fernando – A gente vê isso em todos os níveis de design de empresas renomadas, que são de luxo, mas entendem o porquê do luxo. O luxo está em como foi feita a costura – como nosso mentor italiano, Massimo Morosi, falava sempre, cada ponto no estofado é trabalhado. E é trabalhado, muitas vezes, por pessoas que vieram da cultura popular. A Edra, para fazer a Cadeira Vermelha, contratou um senhor da Sicília que trançava vime em garrafões de vinho. Ele desenvolveu uma técnica que fazia em uma semana. Diante da complexidade do projeto e da realização, que não é feita por uma máquina, isso tem um valor. E inspirou gerações.
Quais perguntas vocês se fazem quando estão no processo criativo? E quais perguntas vocês se faziam?
Humberto – Se estou sendo honesto comigo. Se aquilo é verdadeiro, se tem verdade. Influências a gente tem por todos os lados, mas como transformar aquela influência em algo honesto? Tento sempre ser transparente. Desde o início, minha preocupação e a do Fernando era não cortar árvores.
Fernando – Nosso pai era agrônomo. Ele tinha noção ambiental.
Humberto – Quando começamos, design brasileiro era sinônimo de madeira boa, de lei. Escolhemos outra estrada, de trazer humildade e dignidade. Viemos de um país pobre. Queremos mostrar que os materiais mais usados pelo brasileiro têm humildade e dignidade, sem copiar o quintal dos outros. Mostrar a potência da minha casa.
Fernando – Contar a minha história a partir do que a gente tem por frame, a nossa família, o campo, o urbano. Nossa convivência entre campo e urbano, como traduzimos para o mundo. Hoje eu me pergunto como posso contar a história da forma mais correta e que mantenha a alegria do início, não encaretar, virar uma coisa chata. Me pergunto sempre: como posso criar impacto, alegria, conforto, sem tocar tanto no que já está tão frágil.
O que significa falar de honestidade em uma época tomada pela projeção de imagens pessoais distorcidas em redes sociais?
Fernando – Não gosto de redes sociais, eu não tenho. Sou totalmente offliner. Estou para instalar meu e-mail no celular há algumas semanas. Gosto de estar desconectado. Dá para conectar com outras vibes, e não essa competição de ego, de físico, ou de mostrar a sua habilidade. Você pode ser tudo na internet, mas num contar de 40 anos, o que essa pessoa fez? Eu não me exponho, mesmo. A venda da imagem ou do produto, ou do que você é pela internet, é tão fugaz. Prefiro que as pessoas descubram nosso trabalho como sempre descobriram: indo no estúdio. Procurando como a gente faz.
Humberto – Eu me divirto no Instagram vendo as pessoas se exibindo. Quando colocam fotos sem camisa, com uma frase do dia. Acho maravilhoso! Eu não acredito.
Vocês já deram dezenas de entrevistas, falaram sobre muitos assuntos, de formas diferentes. Existe algum tema que gostariam de ter falado ou de explorar mais?
Humberto – Eu não falo muito. Barulho me incomoda, eu procuro o silêncio. Acho que a resposta hoje é fazer. O fazer silencioso. Plantar árvore. Plantar árvore é como eliminar um carma meu. Fico pensando nas plantas que eu plantei, no jardim que eu cuido.
Fernando – Gosto de plantar. Fico imaginando a planta crescendo, fico olhando para o vaso, para a árvore. Virei fiscal da natureza. E é legal seguir esses instintos.
É um tipo de design, não é? Observar e criar a partir do que vocês plantam?
Humberto – Hoje em dia, a natureza está em favor do design. O design que vai em favor da estética, do conforto, de tudo.
Fernando – Quando eu estudei, todo o art nouveau foi inspirado na natureza.
O que significa ser subversivo hoje em dia?
Fernando – O que é subversivo? É trabalhar, ficar em silêncio, ir para a lei natural, respeitar as leis. É fazer o que for para mudar o mundo no momento.
Humberto – O silêncio é subversivo. O silêncio significa ser verde. O mundo está tão distópico que a subversão pede uma mudança completa na produção de tudo.