Pós-propósito, um convite urgente para os negócios

Público passou a questionar mais as marcas e analisar se de fato estão preocupadas com o que é importante para o consumidor e a sociedade

Crédito: rawpixel.com

Kika Brandão 4 minutos de leitura

Quando se trata de mudanças significativas no comportamento de consumo das pessoas, existem muitas lentes a serem consideradas. Por exemplo, na pandemia, vimos um aumento das compras online no Brasil, que se sustentou em 2022. De acordo com levantamentos recentes, o Brasil lidera o ranking mundial de crescimento do e-commerce, com alta de 22,2%.

Se, por um lado, esses dados nos dizem que praticamente todo mundo passou a fazer compras online, trago outro dado muito simbólico para o Brasil atual, e que questiona esse crescimento.

Um estudo do Instituto Locomotivas e da empresa PwC, também de 2022, identificou que 33,9 milhões de brasileiros não estão conectados à internet e outros 86,6 milhões não conseguem se conectar todos os dias. 

Esses números mostram que, mesmo que nas nossas bolhas todos tenham celulares de ponta e estejam experienciando a chegada do 5G, ainda há muita gente desconectada ou pouco conectada.

Confrontando um dado com o outro, percebemos que parte da população não está dentro desses estudos e estratégias. O Brasil é complexo e muito plural, e as marcas ainda não dão conta de conhecer seus consumidores.

Os dados mostram o quê e onde, mas não dão conta de mostrar os comos e os porquês.

Os dados mostram o quê e onde, mas não dão conta de mostrar os comos e os porquês que movem os comportamentos das pessoas. E esse é o ponto cego sobre o qual queremos nos debruçar. 

Ainda me choco quando sento com diretores e decisores de grandes marcas e eles contam que não conhecem as pessoas para as quais vendem um produto. Como pode alguém vender cerveja sem entender sobre a mudança de paladar do brasileiro? Ou vender produtos para cuidados com a roupa sem entender a sobrecarga doméstica e como aspectos emocionais, culturais e sensoriais impactam na decisão de compra?

Ou ainda, como as características regionais atravessam drasticamente o comportamento em relação a diversas categorias e produtos? Para nós na Eixo, é uma verdade absoluta que marcas devem se tornar especialistas em seus públicos, e não especialistas em suas marcas.

Durante a pandemia fizemos pesquisas para entender a relação das pessoas com máquina de lavar e cuidado com as roupas; consumo de cerveja e uísque; relação dos jovens com pautas identitárias e o que entendem por impacto; sobre o universo dos pequenos negócios periféricos no setor da construção civil; saudabilidade e assim por diante.

As narrativas da publicidade não são pensadas para resolver problemas reais, nem problemas da sociedade.

Estudamos as transformações dos brasileiros a partir de múltiplas lentes. Uma das coisas mais marcantes, até agora, tem sido o fato de as pessoas estarem desconfiadas e reticentes em relação ao que esperam das marcas.  

Isso foi identificado em todos os recortes sociais e gerações. A pandemia escancarou a desigualdade de uma forma jamais vista no país. O poder de compra diminuiu e lidamos com questões não tão presentes de forma massiva em nosso cotidiano.

As pessoas passaram a questionar mais as marcas que acompanhavam e com as quais se identificavam e a analisar se de fato elas estavam preocupadas com o que era importante para o consumidor e para a sociedade. 

NARRATIVAS INÚTEIS

Pós-propósito é um conceito relativamente recente, que define a necessidade dessa próxima prática das marcas – é sair do storytelling. Ele começou a se ampliar em 2019, quando as pessoas passaram a exigir algo das marcas que antes era item opcional: a verdade!

Em resposta a essa busca, vimos as marcas tentando resolver com comunicação algo que é cultura, valor. Fica claro que elas não estão mudando porque querem, mas sim por ser uma condição de existência para quem consome.

marcas devem se tornar especialistas em seus públicos, e não especialistas em suas marcas.

Esse tal pós-propósito chega como uma exigência para que as marcas saiam do discurso e realmente entrem na prática – e não essa tentativa de dizer que seu propósito é levar a felicidade para seus consumidores ou facilitar suas vidas.

Porque, diante desse mundo que derrete cada vez mais rápido – seja pelo aquecimento global, desmatamento da Amazônia, violência contra a mulher, pelo racismo e homofobia escancarados, pelo genocídio dos povos originário (motivos não faltam) –, as narrativas da publicidade não servem mais para nada. Elas não são pensadas para resolver problemas reais, nem problemas da sociedade.

Uma verdade que vimos em nossos estudos, conversando com muita gente em diferentes lugares do Brasil, é que existe um sentimento sólido e latente de que as marcas ajudaram a criar vários dos problemas que temos hoje na sociedade. Esses assuntos estão sendo debatidos constantemente nas redes sociais e no convívio diário dessas pessoas.

O pós-propósito convoca marcas a saírem das narrativas bonitas e irem para a prática, construindo futuros mais plurais, diversos, acessíveis, e que melhorem a vida de mais pessoas. O pós-propósito vem nos dizer que belas narrativas de nada servem se não houver prática e compromisso aliados a elas.


SOBRE A AUTORA

Kika Brandão é head da Estúdio Eixo, consultoria de estratégia e cultura da B&Partners. saiba mais