Chegou a hora de estabelecer fronteiras digitais
A bela anarquia dos primórdios da internet se transformou em uma ferramenta de subversão e repressão
Era natural para as elites ocidentais imaginar que as fronteiras teriam cada vez menos importância após o fim da Guerra Fria e a criação da União Europeia. No entanto, isso resultou em más decisões políticas.
Talvez a mais desastrosa tenha sido a de manter relações irrestritas com regimes autoritários na esperança de que o livre comércio produzisse riqueza e fizesse com que a China adotasse os valores liberais ocidentais. Mas o tempo provou o equívoco dessas políticas.
A ASCENSÃO DO BIG DATA
Quando o matemático e empresário Clive Humby afirmou que os dados eram o novo petróleo, em 2006, as análises de big data ainda estavam em fase inicial. Hoje, eles são mais importantes do que nunca. São usados para treinar modelos de linguagem – a vanguarda da inteligência artificial e do machine learning (aprendizado de máquina).
Os tecnólogos sonhavam com um mundo digital sem fronteiras.
Para isso, é necessário um enorme volume de lingua- gem humana. De fato, o corpus de material utilizado no treinamento dos modelos mais avançados do mundo é toda a internet.
Tecnólogos também sonhavam com um mundo digital sem fronteiras. No entanto, serão as organizações com o melhor hardware, com os profissionais mais inteligentes e com acesso aos maiores conjuntos de dados que vencerão a corrida para construir a melhor inteligência artificial. Pesquisadores patrocinados pelo governo chinês certamente atendem aos dois primeiros requisitos. Não há razão para lhes dar acesso irrestrito ao terceiro.
QUAIS SÃO AS APOSTAS?
O controle das fronteiras digitais é um sério problema para os regimes democráticos liberais. Em vez de uma única internet global, ela começou a se fragmentar. Esse movimento foi impulsionado pela China e pela Rússia, que implementaram amplos regimes de monitoramento de rede.
A internet é algo físico. Embora sua infraestrutura seja, em grande parte, invisível, os dados são transportados por cabos de fibra óptica ou por meio de pontes sem fio ponto a ponto. Então, quando um país decide controlar o acesso à internet, ele se vê diante de um desafio técnico, porém, razoavelmente simples de solucionar.
A inteligência artificial é a primeira ferramenta que replica de forma convincente a mente humana.
A China descobriu como fazer isso de forma muito eficaz com o “Grande Firewall”. Nada acontece sem a aprovação e o monitoramento do governo. Aqueles que acreditam estar protegidos usando uma VPN (rede virtual privada) estão completamente enganados.
Na China, os dados são coletados para construir ferramentas preditivas e para conter possíveis distúrbios. Isso pode fazer com que a internet se torne uma arma para beneficiar regimes autoritários, de quatro maneiras:
1 . Esses regimes podem controlar o acesso à internet, impondo uma censura rígida e invisível sobre o que seus cidadãos podem ou não ver.
2 . As redes ocidentais estão expostas a ataques rotineiros e devastadores de agentes de regimes autoritários.
3 . Cidadãos e empresas ocidentais estão sujeitos a apelos diretos e direcionados de entidades comandadas por Estados autoritários através de publicidade ou meios mais sutis.
4 . O acesso irrestrito a toda a internet permite a coleta irrestrita de dados. Embora regimes autoritários mirem em bancos de dados de aplicativos que protegem informações pessoais e confidenciais, é necessária uma coleta mais ampla de textos brutos gerados por humanos para treinar modelos de linguagem de IA.
As apostas são no treinamento de sistemas de IA. A inteligência artificial é a primeira ferramenta que replica de forma convincente a mente humana. Ela é capaz de criar uma experiência exclusiva e direcionada para cada cidadão. E, potencialmente, pode se tornar a ferramenta perfeita para propaganda política, uma arma para enganar e persuadir as pessoas como nunca.
O QUE PODE SER FEITO?
É crucial que os Estados democráticos liberais do ocidente protejam suas fronteiras digitais e ganhem vantagem nesse confronto. Os EUA precisam adotar três políticas interrelacionadas:
As relações digitais devem ser simétricas entre os Estados: para países que limitam conteúdos e tentam controlar o que seus cidadãos podem acessar, devemos impedir que acessem os bancos de dados dos EUA.
Precisam reconhecer que as empresas da China e da Rússia são braços do Estado: essas empresas não devem ter permissão para operar nos EUA ou em territórios aliados. Especialmente, quando se trata de uma relação assimétrica. Por exemplo, a Visa não opera de forma irrestrita na China, logo, a Alipay – e o grupo de empresas por trás dela, Alibaba – não deve ter permissão para operar nos EUA.
Precisam subsidiar terminais de internet via satélite, baratos e de ponta, para os cidadãos de regimes autoritários: esses terminais devem permanecer ocultos, ser rápidos o suficiente para baixar vídeos e fornecer acesso irrestrito a toda a extensão da internet ocidental.
Quando os Estados ocidentais não têm o controle do fluxo de dados digitais para além das fronteiras, seus adversários aproveitam essa brecha. A bela anarquia dos primórdios da internet se transformou em uma ferramenta de subversão e repressão. Precisamos pôr um fim nisso e transformar a internet de novo em uma ferramenta para difundir nossos valores e interesses.