Os desafios intergeracionais em um relato de vida
Neste mês de novembro que passou, minha avó completaria 97 anos. Minha mãe é de 1951, portanto, quando a minha avó tinha apenas 50 anos, sua filha – aos 24 – estava grávida de mim. Algo bastante natural para a época. Já eu fui engravidar uma década mais tarde em relação a elas.
Para homenagear uma das mulheres mais importantes da minha vida, resolvi bater um papo com sua filha – minha mãe – para entender mais a fundo essas diferenças intergeracionais.
Entre os principais insights, chegamos à conclusão de que essa dinâmica mudou porque os tempos, de fato, mudaram.
A construção da família – e, consequentemente, abrir mão do trabalho – era prioridade para minha avó. Porque entre o papel de ser mãe e exercer uma profissão havia a culpa de se sentir dividida.
A própria constituição familiar tem passado por uma série de transformações desde então. Há algumas décadas, uma tia que não se casou, por exemplo, ajudava no dia a dia da criação dos sobrinhos. Hoje, ela se aposenta e quer mais é viver a vida.
As redes sociais chegaram para, entre outras consequências, aproximar as diferentes gerações. Ainda bem, porque minha avó costumava mandar um cartão postal nas viagens, o qual muitas vezes chegava só depois dela (risos).
As redes sociais chegaram para, entre outras consequências, aproximar as diferentes gerações.
A opinião dos filhos nos temas da família, então, quanta diferença! Na geração da minha mãe, ela não tinha nem sequer lugar para expressar um ponto de vista.
Depois foi a vez de surgirem os conflitos quando minha mãe passou a ter que defender seu ponto de vista para conseguir convencer seus filhos.
Pensando bem, temos os valores como a nossa base, e precisamos aprender a lidar com as mudanças. Podemos ser “velhos” de idade, porém com ideias atualizadas para que se estabeleça um diálogo com a nova geração. A ideia é aprender com eles e estes enxergarem nos 50+ uma história viva com quem também possam trocar.
A verdade é que não estamos preparados, nem como pessoas nem como país, para o envelhecimento. Existe bastante preconceito de idade por aqui.
Leia a seguir trechos da nossa deliciosa, porém reveladora conversa entre mãe e filha – e avó (in memoriam).
Tati Gracia – Como era a vovó aos 50 na comparação com você aos 50 e um pouco da sua filha (eu), hoje, na faixa dos 45 rumo aos 50?
Edna Gurgel – Acho que a gente tem que voltar um pouquinho a fita da vida para o início da construção da família. Porque a minha mãe precisou fazer uma opção em relação a ter um casamento ou um trabalho. Ela era contadora, trabalhava no Ministério da Fazenda e havia uma exigência do meu pai para que ela parasse de trabalhar.
Então, a gente já começa a ver aí uma grande mudança: na construção das relações familiares: você tinha que renunciar a algo. No caso, de uma vocação, de uma profissão, de um desejo. Isso, por si só, já era motivo de muito estranhamento se compararmos a minha geração com a das minhas filhas.
Tati Gracia – Esse papel permanece igual até hoje? Por quê?
Edna Gurgel – Ainda nos sentimos muito divididas entre o trabalho e ser mãe. É a questão da culpa. "Ah, eu devia ficar mais com meu filho… ah, eu ainda estou no trabalho, como será que está meu filho?". Outro ponto é que as famílias tinham uma conformação diferente, então sempre tinha uma tia que não se casou, ou um primo que podia ajudar.
Hoje em dia, é muito mais difícil contar com o auxílio de parentes porque todos trabalham, têm uma vida independente e, quando se aposentam, querem viver a vida. A mulher ainda assume esses dois papéis de uma maneira bastante sobrecarregada. Em relação à minha mãe e a mim, os homens estão mais participativos na divisão das tarefas e na educação dos filhos, mas a mulher continua sobrecarregada.
Tati Gracia – Em relação à comunicação dentro das famílias, o que mudou?
Edna Gurgel – Em relação à linguagem, as redes sociais, de alguma maneira, aproximaram muito as famílias. Antes, as crianças e os adolescentes iam estudar no exterior e a gente quase não tinha contato com eles. Minha mãe, quando viajava, mandava cartão postal e ela chegava antes dele. E olha que ela às vezes vinha de navio…
Por outro lado, as redes sociais também afastam. Lembro de uma época em que havia racionamento de luz no Rio de Janeiro. Nesse momento, não tinha televisão, não havia nenhum meio de comunicação disponível. As famílias, então, se reuniam para conversar e, nesses bate-papos acontecia a aproximação. É algo com o qual a gente vai ter de aprender a lidar, como encontrar espaços de aproximação que não sejam 100% substituídos pelos meios digitais.
Tati Gracia – Quero refletir um pouco sobre o lugar dos filhos na instituição família. Como você vê essa evolução?
Edna Gurgel – Na minha geração, tínhamos poucas oportunidades de externar a nossa opinião. O que prevalecia era a vontade dos pais e tínhamos que seguir o que eles diziam. Eu vivenciei a época de uma grande revolução para meus pais, que não estavam preparados para isso: movimento hippie, queima de sutiã, pílula anticoncepcional, perda da virgindade antes do casamento, minissaia, maquiagem.
As mudanças começaram a acontecer muito rapidamente e ficava cada vez mais difícil para os pais acompanharem, ainda mais aceitarem. Os valores estavam e seguem mudando.
Temos que aprender a lidar com essas mudanças rapidamente para não sermos pessoas envelhecidas, com ideias antigas, para estabelecermos um diálogo com as novas gerações. E trocar com eles para que vejam em você uma história que foi construída e precisa ser valorizada. Importante também reconhecer que nossos filhos estão construindo uma história com muitas novidades, com a qual podemos seguir aprendendo.
Tati Gracia – Como você vê o etarismo, o preconceito contra a idade, na sua vida, no seu dia a dia e na sua profissão de enfermagem que sempre esteve à frente da saúde mental e como docente no Brasil?
Edna Gurgel – Essa percepção do que é ser velho não pode estar descolada da realidade da sociedade e do país. O Brasil ainda está atrasado acerca do combate ao etarismo porque estamos saindo de uma nação de muitos jovens para muitos idosos. Só que não estamos preparados para essa transição. Ainda estamos nos preparando. Vide a questão da acessibilidade por conta da falta de manutenção de calçadas, rampas etc.
A gente ainda vê muito preconceito no trabalho, tanto na contratação de profissionais da saúde mais velhos quanto no incentivo ao desenvolvimento contínuo e reconhecimento dos mesmos frente aos mais jovens. A intergeracionalidade tem um grande poder, ancorado na troca de experiencias e conhecimentos, mas ainda não adotamos esse movimento no Brasil em comparação com países desenvolvidos.
Tati Gracia – O que dizer sobre a culpa das mães de hoje sobre a divisão do tempo entre os filhos e o trabalho?
Edna Gurgel – Acho que a gente precisa fazer uma análise que nos ajude a chegar a um meio termo sobre o duplo papel da mulher na sociedade. Até que ponto trabalhar, até que ponto ficar com o filho para não irmos de um extremo a outro? Qual é a qualidade da relação e do tempo que eu fico com eles – afinal, nem sempre podemos passar muito tempo juntos.
Tem aquele ditado super antigo que ensina que quantidade não quer dizer qualidade… às vezes, você fica pouco tempo com seu filho, mas é um momento de tanta riqueza, de tanta troca, que essa sensação de culpa diminui. Para mim, a questão aqui é menos sobre a quantidade e mais sobre como ter momentos de qualidade com meus filhos.
Tati Gracia – Você está falando de culpa em relação a ser mãe, mas você é avó, já passou dos 70 anos e trabalha muito. Ainda sente essa culpa por estar longe da sua neta ou isso mudou?
Edna Gurgel – Não, a culpa continua. Esse sentimento não vai embora. Por que trabalhar aos 72 anos? Muito mais por uma necessidade financeira. Afinal, estou para conhecer um idoso que não tenha dificuldade de pagar os exorbitantes preços dos planos de saúde no Brasil. No entanto, meu desejo é ficar cada vez mais perto da minha família.
Há cerca de dez anos, não fiz um concurso no estado em que elas moram, São Paulo, porque achei que já tinha passado o meu tempo. Bobagem! Fui preconceituosa comigo mesma porque me achei “velha” demais para prestar um concurso para uma instituição pública na faixa dos 60 anos. No entanto, dois anos depois, resolvi me aventurar e fui aprovada num concurso público no estado do Rio de Janeiro. Fica a dica, cuidado com os seus próprios preconceitos!
Tati Gracia – Por fim, na vivência do etarismo no seu cotidiano, quais preconceitos você sente hoje aos 72 anos?
Edna Gurgel – O primeiro vem dos meus próprios filhos. Na cabeça deles, a idade que eu tenho me limita a determinadas ações ou pensamentos. Vejo que, às vezes, eles dão uma “escorregada” na relação que têm comigo. Entretanto, o modo de pensar dos meus filhos reflete claramente o modelo da sociedade brasileira.
Tenho me perguntado qual é ainda a representação social de uma pessoa com 72 anos. Outro ponto é que não me sinto segura para falar absolutamente nada sobre a questão da sexualidade de nós mais velhos, porque esse tema, apesar de já termos evoluído bastante, ainda é um tabu em todas as idades. Mas isso fica para uma próxima conversa!