Porto Digital e os 30 anos do Manguebeat: a poderosa mistura de arte, tecnologia e inovação


Clayton Melo 5 minutos de leitura

“Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.”

O trecho acima faz parte do manifesto “Caranguejos com cérebro”, escrito em 1992 pelo jornalista e músico pernambucano Fred Zero Quatro, fundador da banda Mundo Livre S.A. O texto é o marco zero do Manguebeat, movimento cultural que energizou e desobstruiu as veias não só do Recife, mas de toda a cultura brasileira na década de 1990.

Um movimento que funcionava como um “circuito energético”, nas palavras de Fred, articulado em diferentes pontos do Recife, “capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop” e que tinha como símbolo uma antena parabólica enfiada na lama.

Daqui para frente, inovação anda de mão dadas com ancestralidade, com o saber local e com a busca de modelos de cidades regenerativas, inclusivas e criativas.

Antenas ligadas para captar o mundo e assim oxigenar o Recife, para depois espalhar para todo o Brasil a potência periférica do mangue. E deu certo. Na cena musical, o projeto liderado por Chico Science & Nação Zumbi ganhou corações e mentes de toda uma geração no Sul e Sudeste do país.

Mas a riqueza criativa do Manguebeat era tamanha que o choque que ele provocou sacudiu também a cena de tecnologia do Recife. Os caranguejos com cérebro inspiraram, algum tempo depois, no ano 2000, a criação do Porto Digital, o parque tecnológico que colocou a cidade no mapa nacional da inovação e foi responsável direto pela recuperação do centro histórico.

O ano de 2022 marcou o 30º aniversário do movimento Mangue. Revisitar conceitos, histórias e reverberações dos mangue boys e mangue girls e suas conexões com tecnologia, inovação e cidades é uma boa maneira de refletirmos sobre como construir o futuro a partir da inovação numa era que se mostra desafiadora, com crise climática,  iminência de desastres ambientais irreversíveis e desigualdade social alarmante.

Uma era em que inovar não é mais diferencial, mas questão de sobrevivência, e em que o próprio entendimento sobre o que é inovação se renova e se alarga. Ficou para trás o pensamento antiquado de organizações fechadas em si mesmas, como castelos corporativos desconectados da sociedade.

Veio para ficar a visão, na prática, de que a inovação está em qualquer lugar e é potencializada pela diversidade – está aí a “descoberta”, pelo mundo dos negócios, da potência das periferias, das favelas, da mistura de origens e experiências. Daqui para frente, inovação anda de mão dadas com ancestralidade, com o saber local e com a busca de modelos de cidades regenerativas, inclusivas e criativas.

SPIN-OFF DO MANGUEBEAT 

Essas são mensagens que o Manguebeat, à sua maneira e em seu tempo, disseminou pelas “antenas parabólicas” da cultura. Desde o início ele tinha na pluralidade e na inovação a sua base, segundo escreveu H.D. Mabuse, um dos idealizadores do Manguebeat e designer responsável pela criação de cartazes de shows e capas de disco do movimento.

No artigo “Por que o ecossistema do Recife foi um spin-off do Manguebeat”, publicado na revista MIT Sloan, Mabuse – hoje pesquisador do Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife (Cesar), entidade que está entre os pioneiros do Porto Digital – argumenta que o polo de inovação que engloba o Porto Digital e o Cesar nasceu desse projeto sociocultural, que foi abraçado pelos pesquisadores acadêmicos.

Para o bem de todos, os universos das artes e da tecnologia se encontraram e compartilharam a mesma mesa de bar.

Sobre isso, Silvio Meira, cientista e um dos criadores do Porto Digital e do Cesar, disse o seguinte, conforme citado por Mabuse: “Nos encontrávamos em todos os bares, em todos os lugares, na Soparia, com a galera que estava montando o Movimento Mangue (…) a interação com esse movimento cultural e o redesenho que ele fazia das bases da música, misturando maracatu com rock, com música clássica nordestina, foi fundamental para a gente ver que era possível fazer alguma coisa de classe mundial a partir daqui. E isso nos deu energia para tentar criar, com mais afinco, com mais determinação, o que viria a ser o Cesar.”

Francisco Saboya, ex-presidente do Porto Digital, deu mais pistas sobre essa conexão em um artigo publicado por ele na imprensa. “Para o bem de todos, os universos das artes e da tecnologia se encontraram e compartilharam a mesma mesa de bar”, escreveu.

“A frase seminal de Fred Zero Quatro – ‘computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro’– conectava as artes e as tecnologias digitais ao mercado. As dinâmicas eram tão entrelaçadas que quase não havia distinção – na própria imprensa, inclusive – entre as palavras beat (unidade rítmica) e bit (unidade computacional) (...) O site que – precariamente – reverberava isso tudo, em especial a música, se chamava 'Manguebit'. Daí para a criação do Cesar, e deste para o Porto Digital, e do PD para a comunidade empreendedora Manguezal e suas centenas de startups, e dali para o Recife ter a maior concentração per capita de estudantes em cursos de computação e informática do país foi um pulo.” 

MANGUETOWN CONECTADA

Passados 22 anos de sua criação, o Porto Digital é um dos maiores parques tecnológicos da América Latina, com a presença de 350 empresas que faturaram, no total, R$ 3,67 bilhões em 2021 e hoje empregam 15 mil pessoas.

Tão importante quanto os ganhos de negócios são os resultados para a vida urbana do centro histórico do Recife. A opção por instalar o parque no então degradado centro da capital pernambucana foi para dinamizar o território e, dessa forma, preservá-lo.

Só na década passada, o Bairro do Recife, onde está o Porto Digital, recebeu mais de R$ 90 milhões para projetos de renovação urbana, como o restauro de prédios que são testemunhas da história da cidade.

O papel histórico do Manguebeat na cultura brasileira e o sucesso do Porto Digital mostram que, parafraseando o manifesto escrito por Fred Zero Quatro, a “descarga inicial de energia” desbloqueou as artérias e o sangue pulsa forte nas veias da Manguetown Recife.


SOBRE O AUTOR

Cofundador da plataforma A Vida no Centro, Clayton tem MBA em marketing, é especialista em comunidades, conteúdo e curadoria de evento... saiba mais