Por que a Holanda legalizou a Cannabis, mas não a maconha?
Leis da União Europeia tornam difícil legalizar o uso recreativo da maconha. Mas Alemanha e Holanda estão começando a reagir
Para quem vê de fora, Amsterdã parece um paraíso para amantes da maconha – uma cidade onde as pessoas podem fazer uso da droga livremente em cafeterias, compartilhando baseados ou comendo os chamados “space cakes”, os famosos bolos feitos com a erva, em um país que parece ter criado um vibrante mercado de cannabis.
Mas isso está longe de ser verdade. Embora revolucionário há 50 anos, o modelo holandês é cheio de problemas. Como, por exemplo, a venda de maconha em cafeterias, que, na verdade, é ilegal de acordo com as leis da União Europeia (UE). Isso criou um mercado paralelo, o que levou ao aumento do crime organizado.
Em outras partes do mundo, a legalização da cannabis está avançando rapidamente. A Europa parecia ter ficado para trás, até que a Alemanha anunciou recentemente um plano para legalizar a substância. Por enquanto, o país terá de enfrentar as rigorosas leis da UE e criar uma infraestrutura totalmente nova. Mas, se for bem-sucedido, poderá servir de modelo para o resto do continente.
As leis mais brandas sobre a cannabis, na Holanda, começaram na década de 1970, quando ela foi descriminalizada, com base nas recomendações de uma comissão estadual de drogas. Desde 1976, o país permite que cafeterias vendam até cinco gramas de maconha aos clientes para consumo no local. Embora alguns municípios tenham restringido essa prática, a lei foi amplamente adotada em Amsterdã, que possui um terço das lojas do país.
Inicialmente, o movimento pretendia isolar o mercado de substâncias leves, criando um espaço seguro para os jovens comprarem maconha sem ter que recorrer a traficantes, que os apresentariam a drogas mais pesadas. “Antes disso, era praticamente uma terra sem lei”, conta Stijn Hoorens, líder sênior de pesquisa da RAND Europe.
Mas, segundo ele, o sistema de venda em cafeterias é meramente simbólico. A política não é tecnicamente legal, mas “tolerada”. É que, embora as leis da UE não permitam o uso de cannabis para fins recreativos, deixam que as punições sejam definidas por cada Estado-membro. O governo holandês declara oficialmente que comercializar a substância é crime, mas opta por não punir as cafeterias.
A questão é o que os holandeses chamam de “problema da porta dos fundos”: como o cultivo de cannabis para venda ainda é ilegal, as cafeterias recebem suprimentos do mercado paralelo – para o qual as autoridades fazem vista grossa.
Deixar de regular foi “um grande erro de projeto”, argumenta Hoorens. Com o tempo, devido ao crescimento da produção ilegal, a Holanda se tornou um centro para drogas mais pesadas vindas das Américas – e um lar para a produção de drogas sintéticas como o ecstasy.
Segundo Tom Blickman, oficial sênior de projetos do programa Drogas e Democracia do Transnational Institute, todos na Holanda veem a situação como insustentável e defendem que não dá para continuar assim.
Isso motivou um movimento político por mudança, particularmente nas últimas duas décadas. Amsterdã agora não permite a abertura de novas cafeterias. Além disso, cidades fronteiriças no sul proíbem não residentes de comprar a droga.
Em outubro de 2022, a prefeita da capital holandesa, Femke Halsema (de esquerda), pediu ao conselho municipal que tomasse a mesma medida para proibir os turistas de frequentar cafés, mas votou contra. A cidade quer limpar sua imagem de ponto de turismo sexual e narcótico e criar um “modelo de turismo de ponta”, diz Hoorens.
LEGALIZAÇÃO EM PAUTA
Agora, a Alemanha está fazendo seus próprios movimentos. O país, que é a maior economia da UE, anunciou em outubro que planeja legalizar totalmente a maconha. É um plano ambicioso, que vai muito além do atual modelo holandês.
A proposta é legalizar a posse de até 30 gramas, o cultivo pessoal de até três plantas e o cultivo para venda ao público em dispensários ou farmácias licenciadas. Blickman observa que os alemães não querem o sistema holandês – “e eles estão certos, porque é uma loucura.”
A UE disse que julgará a viabilidade do plano apresentado pela Alemanha. Se o país quiser lutar em caso de uma decisão contrária, terá que fazer uso de seu capital político – e de nações aliadas – para denunciá-la às Convenções de Drogas da ONU ou forçar uma mudança na lei europeia. “Esse é realmente um obstáculo difícil, mesmo para a Alemanha, o maior e mais poderoso país da UE”, diz Blickman.
Na Holanda, a mudança está finalmente ganhando forma. Em 2017, o governo organizou um experimento de vários anos para ver como a legalização se sairia. O projeto, previsto para ser lançado este ano, em essência vai descriminalizar o cultivo para consumo público.
Além disso, vai estabelecer uma cadeia doméstica fechada de fornecimento de cannabis com várias empresas de cultivo pré-selecionadas, como forma de combater o mercado clandestino e os crimes associados.
A Alemanha anunciou em outubro que planeja legalizar totalmente a maconha.
Foram selecionados 10 produtores de cannabis de origens variadas (mas nenhum que tenha alguma vez participado do mercado clandestino). Durante quatro anos, eles vão abastecer todas as cafeterias de 10 municípios, que representam uma população de cerca de 1,5 milhão de habitantes.
Os resultados do estudo – que vai considerar tudo, desde atendimentos de emergência a reclamações sobre desordem pública em torno de lojas – serão comparados com sete municípios-controle.
Mas, se a Alemanha encontrar uma maneira de contornar a burocracia da UE, Stijn acredita que o governo holandês poderia interromper o experimento e adotar o plano do país vizinho.
Doutor em epidemiologia e pesquisador da Universidade de Maastricht, André Knottnerus, membro do Conselho Científico para Políticas públicas, que fez todo o planejamento da pesquisa, acredita que não será uma tarefa fácil para os alemães.
Seu conselho para o governo do país vizinho foi realizar um projeto semelhante ao que será feito na Holanda, principalmente porque o país não tem nenhuma infraestrutura relacionada à cannabis.
É aí que os holandeses têm décadas de experiência, a despeito das falhas em seu sistema. Assim, se a experiência der certo, “a Holanda estará na frente novamente”, diz Blickman.