Ciência e marketing: por que as big techs usam dois pesos e duas medidas?
Plataformas tratam pesquisadores independentes e ferramentas de marketing de modo totalmente diferente, mesmo quando estão fazendo a mesma coisa
Há alguns anos, recebi um e-mail do Google informando que a minha extensão de navegador, RegretsReporter, corria o risco de ser removida da Chrome Web Store por violar suas políticas. Fiquei bastante preocupada. Não porque a extensão pudesse estar fazendo algo malicioso, mas porque parecia que uma das empresas mais poderosas do mundo poderia estar vindo atrás de mim por causa do meu trabalho.
Apenas três semanas antes, eu havia publicado uma pesquisa que recebeu cobertura da imprensa em todo o mundo, mostrando como o algoritmo de recomendação do YouTube sugeria regularmente conteúdo prejudicial às pessoas – a pesquisa foi realizada usando a extensão que o Google ameaçava bloquear.
dados coletados por web scraping têm um enorme valor comercial.
Essa não foi uma situação isolada. Em 2019, alguns meses antes das eleições para o Parlamento Europeu, o Facebook mudou deliberadamente seu código para bloquear o acesso a ferramentas de transparência de anúncios administradas por diferentes organizações sem fins lucrativos, incluindo a Mozilla (onde atuo como membro sênior), ProPublica e WhoTargetsMe.
Um ano depois – a um mês das eleições presidenciais dos EUA, em 2020 –, a empresa enviou uma carta de “cease-and-desist” (cessar e desistir de uma atividade, sob pena de ação judicial) aos pesquisadores da Universidade de Nova York que também estavam usando uma extensão de navegador para monitorar publicidade política na plataforma.
WEB SCRAPING E SOCIAL LISTENING
Em cada um desses casos, a estratégia agressiva do Facebook se concentrou em uma técnica chamada “web scraping”, que usa automação para recuperar e arquivar conteúdo de sites, como os anúncios no que você vê no Facebook, tuítes que aparecem no seu feed ou vídeos recomendados em sua página inicial do YouTube.
Pesquisadores independentes têm usado essa técnica para revelar operações de desinformação em larga escala, falhas nos algoritmos das plataformas e muito mais. No entanto, os dados coletados por web scraping não apenas contribuem para pesquisas de interesse público, também têm um enorme valor comercial.
Muitas empresas pagam um bom dinheiro às big techs para acessar APIs que lhes dão acesso a ainda mais dados.
Eles são a base da indústria de “social listening” (ou escuta social, em português), que coleta e analisa dados de redes sociais em nome de empresas que desejam saber o que as pessoas pensam de suas marcas e acompanhar tendências que possam impactar seus negócios.
Empresas multimilionárias, como a Brandwatch e a Meltwater, usam diversos métodos para coletar esses dados, incluindo web scraping, e vendem acesso às suas ferramentas através de assinaturas que custam milhares de dólares por mês. No entanto, enquanto os pesquisadores recebem regularmente cartas de cessar e desistir pelas mesmas práticas, elas são consideradas parceiras confiáveis das plataformas.
Uma das razões para isso pode ser a grande quantidade de dinheiro envolvida. Além do web scraping, muitas pagam às big techs centenas de milhares de dólares por mês para acessar APIs de nível empresarial que lhes dão acesso a ainda mais dados.
Além disso, o negócio em si dessas empresas é fazer as marcas gastarem cada vez mais com publicidade nas redes sociais – mais um motivo para as plataformas fecharem os olhos. Exceto, é claro, quando começam a ameaçar seus lucros.
REDES SOCIAIS COMO CAMPO DE BATALHA
Recentemente, o Facebook encerrou uma batalha judicial de dois anos contra duas empresas de “inteligência de marketing”, BrandTotal e Unimania, que, segundo a rede social, violaram seus termos de serviço ao coletar dados.
A BrandTotal alegou que as ações movidas pela plataforma eram anticompetitivas, destinadas a impedir empresas menores de fornecer análises de publicidade a seus clientes. Afinal, o Facebook entrou com o processo pouco depois de a empresa arrecadar US$ 12 milhões em financiamento de risco e fechar contratos com grandes marcas, como a L’Oréal.
Para aqueles que desejam monitorar o ambiente digital de fora, como jornalistas e pesquisadores, os riscos legais permanecem.
Embora o acesso a dados de redes sociais esteja diminuindo (exceto para aqueles que estão dispostos a pagar), sua importância para o bem-estar individual e social está aumentando. No próximo ano, mais de dois bilhões de pessoas irão às urnas nas eleições dos EUA, do Parlamento Europeu, da Índia, África do Sul, México e mais de 50 outros países.
As plataformas digitais continuarão sendo os principais campos de batalha onde essas disputas serão travadas. Na ausência de supervisão, podem se tornar a linha de frente para conflitos e manipulações em massa. Felizmente, o novo Regulamento de Serviços Digitais europeu contém algumas disposições que concedem acesso aos dados das redes sociais aos pesquisadores.
No entanto, esse acesso é restrito a grupos de pesquisa cujas solicitações são aprovadas por agências governamentais ainda não designadas em toda a União Europeia. Para aqueles que desejam monitorar o ambiente digital de fora, como jornalistas e pesquisadores da sociedade civil, os riscos legais permanecem.
Apesar disso, minha equipe na Mozilla continua investindo no RegretsReporter. Mais de 70 mil pessoas o usaram para coletar e nos enviar dados sobre as recomendações que aparecem no YouTube. Como a maioria dos pesquisadores, esperamos que o dano à reputação que o Google sofreria caso nos removesse seja o suficiente para impedi-los.