Vint Cerf, pioneiro da internet: precisamos encarar IA com verdade e responsabilidade

Um dos "pais da internet”, o matemático diz que se preocupa com a tendência à desinformação

Créditos: Vint Cerf/ Tiginbeg/ Wikimedia Commons

Mark Sullivan 5 minutos de leitura

Vint Cerf, amplamente reconhecido como um dos “pais da internet”, receberá no próximo mês a prestigiosa Medalha de Honra do Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos. Mas prêmios não são novidade para o matemático, que desenvolveu (em conjunto com Robert Kahn) os protocolos TCP/IP que permitem o tráfego de todo o tipo de informação na internet.

A homenagem chega em um momento que é, ao mesmo tempo, promissor e perigoso. A internet se tornou uma parte central da vida das pessoas e das empresas, mas também se transformou em uma plataforma para a disseminação de informações falsas e prejudiciais, tanto no mundo digital quanto no físico.

A Fast Company conversou com Cerf – que atualmente trabalha como vice-presidente e evangelista-chefe da internet no Google – sobre as ameaças que a IA generativa e os problemas relacionados a ela podem representar para a internet e seus usuários. A seguir, suas reflexões (editadas para maior concisão e clareza).

SOBRE A DESINFORMAÇÃO NO SÉCULO 21

“A disponibilidade de informação e seu rápido acesso, claro, é vital para uma sociedade informada.

Portanto, o ponto que quero destacar aqui é que a internet, a world wide web e os serviços de indexação, como o Google Search, se tornaram os meios pelos quais informações são descobertas e acessadas. O problema é que algumas delas não são confiáveis.

Mas o mesmo se aplica a livros, jornais, revistas, programas de televisão e assim por diante. A world wide web apenas tornou possível encontrar informações, verdadeiras ou falsas, em enorme volume.

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No entanto, isso coloca um fardo sobre os usuários, porque precisamos reconhecer que as informações variam em qualidade. No Google, fazemos o possível para fornecer respostas confiáveis. 

Você deve se lembrar da história por trás do PageRank. Larry Page e Sergey Brin eram estudantes de pós-graduação em Stanford quando chegaram à conclusão de que páginas cujos links aparecem em muitas outras seriam mais relevantes. Então, por que não organizá-las dessa maneira?

Agora, temos centenas de indicadores que nos ajudam a descobrir como classificá-las, porque não é possível analisar todas de uma vez. É uma ferramenta muito importante, mas não é perfeita.”

SOBRE CHATBOTS DE IA

“Estou começando a achar que precisamos de mais e mais indícios da procedência do material que oferecemos. Especialmente agora que estamos entrando na era dos chatbots, que são como processadores de alimentos.

Eles são treinados a partir de conjuntos de dados aleatórios – enormes quantidades de informações de qualidade variada. E mesmo que tudo seja factual, descobri muito fazendo meu próprio experimento.

Decidi pedir que escrevesse um obituário para mim. Mas o chatbot tendia a misturar as informações. Por exemplo, ele me atribuía coisas que outras pessoas fizeram e vice-versa. Lembro-me de olhar para aquilo e pensar: ‘como isso aconteceu?’

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Imagine que fatos são como legumes e você vai fazer uma salada. Como? Bem, usando uma coisa chamada processador de alimentos, certo? Basta colocar as cenouras, nabos e alface lá dentro e ele corta tudo em pedaços pequenos. Você então mistura mais um pouco e se serve.

Qual é a analogia? Suponha que você pegue frases factuais e as divida em pequenas partes, chamadas tokens nos sistemas de treinamento. Quando [a IA] responde à sua solicitação, ela simplesmente puxa todos esses fragmentos de coisas factuais e os junta de maneira gramaticalmente correta.

É só isso. É possível produzir textos muito convincentes, porém, totalmente incorretos. Mas, devido à maneira como o sistema de ponderação das redes neurais é construído, parecem muito críveis, especialmente quando você desconhece os fatos.”

UM SUPEREGO PARA IA

“Isso significa que encontrar uma maneira de incluir a procedência das afirmações feitas pelos chatbots será fundamental. Porque mesmo que seja tudo factual – o que não é o caso – nos deparamos com esse problema. Mas tenho visto algumas tentativas de solucioná-lo.

precisamos de mais indícios da procedência do material que oferecemos, especialmente agora que estamos entrando na era dos chatbots.

Lembra da teoria de Freud? Existe o id, o ego e o superego. Este último, como o córtex pré-frontal, exerce a função de sensor para evitar que você faça coisas que normalmente não faria.

Embora não saiba ao certo, suspeito que as redes neurais estejam sendo combinadas, o que gera incertezas sobre os resultados que os chatbots produzem. Nesse sentido, a existência de um superego seria importante para garantir a qualidade do conteúdo gerado. Ele agiria como uma espécie de filtro que impede a disseminação de desinformação.

Como consumidores dessa tecnologia, agora carregamos um fardo. O preço que pagamos para ter acesso instantâneo a todas essas informações é pensar criticamente sobre elas. Precisamos dar às pessoas ferramentas, e a procedência é uma delas.”

SOBRE IDENTIDADE E RESPONSABILIDADE

“Uma das coisas sobre as quais eu continuo falando é responsabilidade e autonomia. De maneira geral, acho que precisamos encontrar formas de responsabilizar as partes pelo que fazem e dizem na internet. E essas partes podem ser indivíduos, empresas ou até mesmo países.

É fundamental que elas possam ser identificadas. Isso leva a algumas questões difíceis sobre anonimato e proteção da privacidade, mas, ao mesmo tempo, as responsabiliza pelo que fazem.

Preciso fazer outra analogia: placas de carro. São apenas um conjunto de letras e números, mas algumas pessoas, sobretudo a polícia, podem quebrar esse anonimato e descobrir quem é o dono do automóvel. Mas só podem fazer isso com uma autorização. Precisamos de algo semelhante, com proteções adequadas.”

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UM CONTRATO SOCIAL PARA A VIDA DIGITAL

“Este não é um problema novo. Nossas civilizações sempre o tiveram. Se lembrarmos do contrato social de Rousseau, ele basicamente diz que os cidadãos abrem mão de uma certa quantidade de liberdade em troca de proteção e uma sociedade segura. Ou seja, minha liberdade acaba quando está prestes a interferir na do outro. E este é um conceito importante.

Estamos tentando descobrir como fazer o mesmo no mundo online. E isso também se aplica à autonomia.

Precisamos proporcionar aos indivíduos, organizações e países os meios para se protegerem de danos neste ambiente conectado – de serem enganados, vítimas de fraude etc. 

Mas como diabos vamos fazer isso? Como preservamos os direitos e liberdades das pessoas ao mesmo tempo em que construímos barreiras para que não sejam prejudicadas por este ambiente?”


SOBRE O AUTOR

Mark Sullivan é redator sênior da Fast Company e escreve sobre tecnologia emergente, política, inteligência artificial, grandes empres... saiba mais