Eventos climáticos “estatisticamente impossíveis” já estão acontecendo

Mais de um quarto da superfície terrestre do planeta já experimentou ondas de calor intensas. Algumas regiões precisam se preparar para esse risco

Créditos: Laurence Dutton / ismagilov/ iStock

Nicholas Leach 5 minutos de leitura

No verão de 2021, o recorde de temperatura de todos os tempos do Canadá foi quebrado em quase 5 graus Celsius. O novo recorde, 49,6 graus, é mais quente do que qualquer máxima já registrada na Espanha, na Turquia ou em qualquer outro lugar da Europa.

O recorde foi estabelecido em Lytton, um pequeno vilarejo a poucas horas de carro de Vancouver, em uma parte do mundo que ninguém diria que alcançaria temperaturas tão altas.

O que Lytton testemunhou foi o clímax de uma onda de calor que atingiu o noroeste do Pacífico dos Estados Unidos e Canadá naquele verão e que deixou muitos cientistas chocados. De um ponto de vista puramente estatístico, aquilo parecia ser impossível.

Faço parte de uma equipe de cientistas do clima que queria descobrir se a onda de calor do noroeste do Pacífico tinha sido a única do tipo ou se alguma outra região havia passado por esses eventos estatisticamente implausíveis. Também queríamos avaliar quais regiões corriam maior risco de viver isso no futuro.

Rio Fraser River, próximo a Lytton, no Canadá (Crédito: Paul Williams/ Getty Images)

Rastrear essas ondas de calor atípicas é importante não apenas porque elas próprias são perigosas, mas também porque os países tendem a se preparar para futuras ondas baseando-se no nível mais extremo que estiver guardado na memória coletiva. Uma onda de calor sem precedentes pode, portanto, provocar respostas políticas para reduzir o impacto do calor futuro.

Por exemplo, estima-se que uma forte onda de calor na Europa em 2003 tenha causado 50 mil a 70 mil mortes evitáveis. Desde então, houve outras ondas de calor mais intensas, mas nenhuma delas resultou em um número tão alto de mortes, graças aos planos de manejo implantados a partir de 2003.

Uma das questões mais importantes ao estudar esse fenômenos é quanto tempo falta até o próximo evento de intensidade semelhante. É uma questão desafiadora. Mas, felizmente, existe um ramo da estatística, chamado teoria do valor extremo, que fornece maneiras pelas quais podemos responder a essa pergunta com alguma precisão, usando eventos passados.

Mas a onda de calor do noroeste do Pacífico é um dos vários eventos recentes que colocaram em xeque a eficácia desse método. Afinal, nenhuma estatística poderia prever tamanho aumento nas temperaturas.

Essa “quebra” das estatísticas é causada porque a teoria convencional dos valores extremos não leva em consideração a combinação específica de mecanismos físicos que podem não existir nos eventos contidos no registro histórico.

CALOR PODE ATINGIR QUALQUER REGIÃO

Olhando para os dados históricos de 1959 a 2021, notamos que 31% da superfície terrestre do planeta já experimentou algum calor estatisticamente “impossível”. Essas regiões estão espalhadas por todo o globo, sem um padrão geográfico claro.

As conclusões que tiramos foram semelhantes quando analisamos dados de “grande conjunto” produzidos por modelos climáticos, que envolvem computadores que simulam o clima global várias vezes.

31% da superfície terrestre do planeta já experimentou algum calor estatisticamente “impossível”.

Essas simulações são extremamente úteis, pois o alcance efetivo desse “registro histórico” simulado é muito maior. Portanto, eles produzem muito mais exemplos de eventos raros.

No entanto, embora essa análise dos eventos mais excepcionais seja interessante e sirva de alerta contra o uso de abordagens puramente estatísticas para avaliar os limites dos extremos físicos, as conclusões mais importantes de nosso trabalho vêm do outro extremo do espectro – regiões que nunca experimentaram eventos extremos.

ALGUNS LUGARES ESTÃO A SALVO

Identificamos várias regiões que não experimentaram nenhuma onda particularmente extrema de calor nas últimas seis décadas. Como resultado, é mais provável que essas regiões testemunhem algum evento recorde em um futuro próximo.

Só que, sem a experiência de um caso atípico tão grande e com menos incentivo para se preparar, esses locais podem ser particularmente prejudicados por uma onda de calor recorde.

Fatores socioeconômicos – como tamanho da população, crescimento populacional e nível de desenvolvimento – vão exacerbar esses impactos. Sendo assim, consideramos as projeções de população e desenvolvimento econômico na avaliação das regiões que estão correndo maior risco.

Essas regiões de risco incluem Afeganistão, América Central e Extremo Oriente da Rússia, entre outras. Elas podem ser pegas de surpresa, uma vez que não são aquelas em que as pessoas normalmente pensam quando consideram os impactos do calor extremo das mudanças climáticas. Mas esses países experimentaram recentemente ondas de calor severas e já estão fazendo o que podem para se preparar.

Crédito: Ricardo Gomez Angel/ Unsplash/ Uniconlabs/ Freepik

A Europa Central e várias províncias da China, incluindo a área ao redor de Pequim, também parecem vulneráveis ao considerarmos o extremo dos registros e o tamanho da população. Mas, como áreas mais desenvolvidas, é provável que já tenham planos para mitigar impactos graves.

No geral, nosso trabalho levanta duas questões importantes:

A primeira é que ondas de calor estatisticamente improváveis podem ocorrer em qualquer lugar da Terra e precisamos ser muito cautelosos ao usar o registro histórico isoladamente para estimar a onda de calor “máxima” possível. Os formuladores de políticas públicas precisam se preparar para ondas de calor excepcionais, que seriam consideradas impossíveis com base nos registros atuais.

A segunda é que há uma série de regiões cujo recorde histórico não é excepcional e, portanto, é mais provável que seja quebrado em breve. Essas regiões tiveram sorte até agora, mas provavelmente estarão mais vulneráveis. Por isso, é importante se preparar para ondas de calor mais intensas do que aquelas que já vivenciaram.

Este artigo foi republicado do The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o  artigo original.


SOBRE O AUTOR

Nicholas Leach é pesquisador de pós-doutorado em ciências climáticas na Universidade de Oxford. saiba mais