Criatividade que impulsiona o progresso. Mas o que estamos chamando de progresso?
Vivendo a terceira década do século 21, a sociedade da qual fazemos parte se acostumou a pensar o progresso como um distanciamento de nosso estado atual e um avanço em direção a algo melhor, mais feliz e mais desejável que se realiza através do desenvolvimento econômico.
Uma visão que, quase sempre, se materializa sem considerar questões subjetivas como, por exemplo, o fato de que, historicamente, o que tem sido considerado progresso para alguns tem criado marcadores humanos e sociais que atravessam negativamente a vida de outros tantos, mantendo ou gerando situações de invisibilidade, sequestro, aprisionamento, dor, retrocesso.
A comunicação das marcas ganha cada vez mais importância, inclusive pelo seu alcance e pela grande quantidade de recursos que movimenta.
Ao nos convidar a pensar na relação entre criatividade e progresso, o Festival de Cannes também nos provoca a questionar o quanto, ao longo da história, nossa ideia de progresso tem sido influenciada por origens, contextos, estruturas filosóficas, cultura e mesmo crenças pessoais.
No século 16, o britânico Francis Bacon acreditava que a humanidade poderia melhorar sua compreensão do mundo através do conhecimento e do desenvolvimento tecnológico. No iluminismo, Jean-Jacques Rousseau, nascido em Genebra, criticou a noção de progresso associada a avanços científicos e tecnológicos afirmando que eles poderiam levar à corrupção moral e à degradação humana. No século 19, John Stuart Mill via o progresso em termos de felicidade humana e liberdade individual.
Como nesses exemplos, as visões e narrativas de progresso que vemos dominar o mundo hoje são predominantemente brancas e do Norte Global. Em uma análise de 339 speakers que se apresentarão nos palcos de Cannes este ano, 91% são do Norte Global, sendo 75% apenas dos Estados Unidos e Reino Unido.
Entre as visões e narrativas que sequer chegaram a disputar espaço nas mentes que narraram a história do século 20 estão Mahatma Gandhi, filósofo indiano que via o progresso como a não-violência, autodisciplina, igualdade e como o empoderamento de comunidades marginalizadas.Krishnamurti, também indiano, que defendia a ideia de progresso como autoconsciência e como o questionamento do condicionamento dos padrões que moldam pensamentos, crenças e ações.
Além deles, Du Bois, sociólogo afro-americano que discutiu o progresso enfatizando a importância de abordar o racismo sistêmico, os direitos civis e as comunidades marginalizadas
as visões e narrativas de progresso que vemos dominar o mundo hoje são predominantemente brancas e do Norte Global.
como essenciais ao desenvolvimento. Haitiano, Michel-Rolph Trouillot, antropólogo e historiador que relacionou o progresso ao desenvolvimento, pela sociedade, da capacidade de ouvir e considerar vozes e perspectivas de grupos silenciados nas narrativas históricas.
Uma das principais referências citadas pelo cineasta haitiano Raoul Peck na série “Exterminate all the Brutes“, exibida no Brasil pela HBO Max, Trouillot incentiva uma discussão crítica sobre os impactos do colonialismo e encoraja uma compreensão do progresso que leve em conta a existência de relações de poder desiguais. No palco de Cannes este ano, apenas 8,2% são citados como originários de países do Sul Global.
É necessário ressaltar: a comunicação tem um papel crucial na abordagem dos desafios mundiais hoje. Em suas diferentes faces, a comunicação das marcas ganha cada vez mais importância, inclusive pelo seu alcance e pela grande quantidade de recursos que movimenta.
Como exemplo, em 2022 a Kantar anunciou que o investimento total em publicidade no Brasil foi igual a R$ 21,2 bilhões, cerca de um quarto do orçamento total do Ministério da Educação e quase 20 vezes o orçamento do Ministério da Cultura no mesmo ano.
Não à toa, intencionalidade, conscientização e educação, mobilização, colaboração, legado, confiança e diálogo estão se tornando cada vez mais palavras comuns no universo do marketing e da publicidade. A proposta de conteúdo apresentada pelo Festival de Cannes este ano é um grande acerto.
Sim, a criatividade precisa estar a serviço do progresso, mas é necessário questionar a serviço de qual ideia de progresso estaremos daqui para frente, quais compromissos estamos dispostos a assumir e que mudanças serão feitas nas réguas de avaliação de sucesso – um assunto sobre o qual poderemos pensar durante a conversa sobre o novo paper da escola de negócios da Universidade de Oxford: Ad Net Zero, que acontecerá já no primeiro dia.
No palco de Cannes este ano, apenas 8,2% são citados como originários de países do Sul Global.
Há muito o que ser feito. Reconhecer e valorizar a importância do Sul Global é crucial para que sejamos capazes de regenerar histórias, descolonizar padrões, buscar e construir soluções e abordagens coletivas e inovadoras para enfrentar os desafios da desigualdade, da pobreza e da mudança climática.
Apesar do excelente convite para pensarmos a criatividade como força motriz do progresso, infelizmente, África, Ásia, América do Sul e Oceania ainda não terão presença suficiente nos palcos do evento. Assuntos relacionados ao tipo de resíduo que produzimos enquanto influenciamos comportamentos de consumo também não estão entre os destaques a serem discutidos.
Mas o encontro de todos nós durante o festival, nas ruas, teatros e arenas de debate vai acontecer. Estando em Cannes, sempre que puder e onde estiver, use sua origem, seu repertório cultural e sua voz. A importância da nossa presença neste momento de construção é incalculável.
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