O poder do futuro

Créditos: CSA Images/ iStock/ Tibe De Kort/ Pexels

Silvana Bahia 5 minutos de leitura

Não há como escapar do futuro. Viver no presente tem sido um desafio cada vez maior para nossas comunidades tão atravessadas pelos estímulos do porvir. Estou falando basicamente das estratégias corporativas de incentivo de aquisição – de informações, de compra, de desejos – que são apresentadas a cada milésimo de segundo, de formas cada vez mais absurdas, enquanto consumimos tecnologias sempre muito inovadoras.

Estamos o tempo todo sendo condicionados a consumir o futuro e isso tem me feito refletir. No último mês, alguns eventos me tocaram de forma muito contraditória e venho fazendo um exercício interessante desde então. Talvez, você que está me lendo agora se identifique.

nossas memórias ancestrais serão capazes de nos fazer viver melhor no presente.

Outro dia, me vi tentada a testar o aplicativo da moda daquela semana que usava IA para simular gestantes e ainda prever o rosto dos nossos bebês. É comum que a gente tenha curiosidade de imaginar nossos corpos no futuro.

Às vezes, até acho que essa é uma boa pauta para pensar modelos de predição e aprendizado de máquina. Mas não demorei a perceber a perversidade do jogo. Quero continuar imaginando meus filhos potenciais como uma imagem autônoma, que eu mesma criei. E não é só sobre o nosso direito de imaginar (como se isso fosse pouco).

Menos de 10 dias depois da febre nas redes sociais, pipocaram algumas notícias sobre o uso abusivo dos dados biométricos oferecidos por nós para a brincadeira. Além de ficarem armazenados por até 10 anos e utilizados por N empresas de marketing para controlar nossos desejos, os dados fornecidos ainda podem ser manipulados por pessoas – funcionários humanos com poderes que jamais saberemos. Por fim, não fiz o teste: fiquei com a dica da Julia Alvarenga.

O papo da inteligência artificial explodiu as bolhas nerds e isso é um ótimo sinal – porque acho que essas conversas precisam estar em muitas outras bolhas também. Tenho acompanhado debates acalorados que envolvem dados, vigilância e máquinas inteligentes em contextos diversos e quero poder trazer esses debates para cá.

Um dos fatores que tem chamado minha atenção é o fato de que as estratégias do mercado estão cada vez mais complexas e acessam nossas mentes (de nossas tias, avós, primas e amigas) de forma cada vez mais profunda e influenciadora.

Há algumas semanas, assisti emocionada a campanha da Volkswagen com uma Elis Regina ressuscitada cantando "Como Nossos Pais"

mais pessoas precisam participar da construção de futuros onde as tecnologias não serão apenas ferramentas, mas também a própria política do mundo.

ao lado da filha sambista, Maria Rita. Sou fã de Belchior, Elis, Maria Rita e, apesar da emoção repentina ativada por memórias afetivas, não demorei a perceber que a peça publicitária subverte o sentido da música que atravessou gerações, insinua que o futuro será uma cópia do passado, simula a presença real e física de uma mulher morta e celebra as tecnologias de IA como possibilidade de revisar o passado. Aqui não!

Em sua coluna no Jornal da USP, Giselle Beiguelman comenta o vídeo e sugere que o destino das IAs "seria nos assombrar diante da impossibilidade de acessar o próprio presente, já que o futuro só existe como miragem de um passado que é, ele mesmo, remake do fake".

Eu quero, sim, poder imaginar o futuro. Mas não vou abrir mão do presente complexo, dos desejos, alegrias e sonhos que construo no cotidiano, com minhas companheiras e companheiros de jornada. Um presente muitas vezes violento, que não nos poupa da fúria do passado, mas que também é repleto de vida, prazeres, descobertas, relações.

Conceição Evaristo, que acaba de inaugurar sua Casa Escrevivência na região do centro do Rio conhecida como Pequena África, nos ensina que é preciso experimentar outras formas de existir nesta vida, acessando outras camadas de mundos.

Com Conceição, aprendo que nossas memórias ancestrais serão capazes de nos fazer viver melhor no presente. Reúno as histórias de resistência de meus antepassados e posso prever futuros mais confortáveis e felizes, inclusive com a ajuda das IAs

Crédito: Divulgação

Outra companhia que sempre me atravessa na jornada da vida é a de Ailton Krenak com quem sou capaz de imaginar futuros mais diversos, onde os direitos dos rios, florestas e outros seres vivos, assim como dos povos que os preservam, geram mais engajamento que experiências de consumo e venda de dados via IA.

Em seu último livro, "Futuro Ancestral", Krenak defende que o futuro é um retorno ao que não podemos nos desconectar para sermos plenos e felizes.

Será possível que essas mesmas tecnologias de vigilância e predição sejam capazes de nos ajudar a imaginar futuros menos desiguais? Quero acreditar que sim!

Para isso, creio que mais pessoas precisam participar da construção de futuros onde as tecnologias não serão apenas ferramentas, mas também a própria política do mundo.

Será possível que essas mesmas tecnologias de vigilância e predição sejam capazes de nos ajudar a imaginar futuros menos desiguais?

E é nessa linha de pensamento que, até 12 de agosto, na energia que move o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, nós da Pretalab oferecemos um espaço de formação e trocas de saberes em tecnologia para 50 mulheres negras moradoras de Salvador, Bahia – esse celeiro de axé e tecnologias ancestrais.

A ementa do curso está baseada em linguagens e exercícios de programação de sistemas e tecnologias complexas. Mas sabemos que essas são apenas ferramentas que estão sendo assimiladas por nós, mulheres negras e indígenas que não nos desconectamos de nosso passado para pensar o futuro, que vivemos o presente atentas e tecnológicas. Não é à toa que nosso programa se chama "O poder do futuro".

Neste futuro ancestral sou capaz de me juntar a companhias tão diversas quanto as que reuni neste texto.

Noutro dia, me vi encantada pelos mamíferos marinhos que são capazes de nos ofertar boas lições para pensar um feminismo negro. As dicas das companheiras baleias estão reunidas no livro de Alexis Pauline Gumbs, uma indicação de Marília Pisani. É que esses seres ancestrais são capazes de respiros profundos e adaptativos para o desafio da vida em alto mar.

Aqui também, neste mundo em conflito, diante de tantas violências, diante das estratégias articuladas de um mercado agressivo, tecnologias sem transparência e que muitas vezes tem potencial para desigualdade, deve ser possível respirar fundo, ganhar fôlego e inventar novos futuros no presente. 

"A respiração é uma prática de presença"

Alexis Pauline Gumbs


SOBRE A AUTORA

Silvana Bahia é codiretora executiva no Olabi – organização dedicada a diversificar a cena de tecnologia e inovação no Brasil. Fellow ... saiba mais