Figurantes dizem que já estão perdendo trabalhos para a inteligência artificial

O uso de IA na indústria do entretenimento é um dos principais pontos de discordância na greve de Hollywood

Equipamento usado para capturar imagens com o processo de fotogrametria (Crédito: Christophe Archambault /AFP /Getty Images

Jessica Goodheart 4 minutos de leitura

Cerca de cinco anos atrás, Nicole Kreuzer teve uma breve participação na série “The Mandalorian”, um faroeste espacial que faz parte da franquia Star Wars. Ela recorda de ter se vestido como uma habitante do deserto. No entanto, sem aviso prévio, foi informada de que precisaria passar por um processo de escaneamento.

Dentro de um trailer, a atriz foi conduzida a uma plataforma onde mais de 100 câmeras capturaram sua imagem. Intrigada, Kreuzer perguntou o que fariam com as imagens. “Podemos fazer você pular prédios. Podemos fazer você lutar", responderam.

O uso de IA na indústria do entretenimento se tornou uma das questões centrais para os atores e roteiristas em greve, que exigem diretrizes mais rigorosas em relação à tecnologia. Os atores argumentam que suas imagens escaneadas poderiam ser usadas mais tarde sem qualquer tipo de compensação ou consentimento.

A Aliança de Produtores de Cinema e Televisão apoia a demanda da categoria, mas o SAG-AFTRA (sindicato dos atores de Hollywood) exige regras mais explícitas para o consentimento dos atores.

The Mandalorian (Crédito: Disney)

Kreuzer trabalha esporadicamente como figurante. Esses profissionais têm papéis sem falas e normalmente aparecem em segundo plano nas cenas. São também considerados os mais propensos a serem substituídos por simulações de IA. Além disso, têm pouco poder de barganha, já que muitos dependem desse tipo de trabalho.

Duncan Crabtree-Ireland, diretor executivo do Screen Actors Guild-American Federation of Television and Radio Artists (SAG-AFTRA), enfatiza que a IA representa uma ameaça ao sustento dos atores. “Alguns temem um possível futuro no qual os estúdios os pressionarão a ceder sua imagem, e suas cópias digitais tirarão seu trabalho”, afirma um artigo recente da “Scientific American” sobre o tema.

E esse futuro pode já estar se concretizando. Kreuzer revela que foi prometido a ela um “grande volume de trabalho” na série de ficção científica. Essa promessa influenciou sua decisão de se submeter ao escaneamento.

“Se tivesse recusado e me mandassem para casa naquele dia, nunca mais teria sido chamada. Mas, de qualquer forma, eles nunca me chamaram de volta”, diz ela. Com o conhecimento que tem hoje, não teria concordado em ser escaneada.

Nem a Lucasfilm, produtora de “The Mandalorian”, nem a Disney, sua controladora, responderam sobre sua política de escaneamento de figurantes quando procuradas.

Roteiristas em greve (Crédito: Philip Pacheco/ Bloomberg/ Getty Images)

Os figurantes ocupam a posição mais baixa de uma hierarquia que se estende até as estrelas mais bem pagas. Eles preenchem as ruas e restaurantes nos filmes e programas de TV, tornando as cenas mais vívidas e reais. Porém, seu trabalho é mal remunerado e, muitas vezes, esporádico.

Para alguns, é um trabalho secundário; para outros, é sua principal fonte de renda. E se esses empregos desaparecerem, eles não serão os únicos a sofrer. Maquiadores, figurinistas e profissionais que cuidam de caracterização e adereços, que os preparam para as filmagens, também ficarão sem trabalho.

Apesar disso, Hollywood já demonstra intenção de usar suas imagens e há relatos de uma onda de contratação de executivos de tecnologia e programadores, indicando que as empresas de entretenimento estão buscando reforçar suas capacidades tecnológicas.

Crédito: Freepik

O SAG-AFTRA parece estar aceitando a digitalização para programas de TV, filmes e videogames, uma prática cada vez mais comum em produções com efeitos visuais. No entanto, o sindicato exige garantias, incluindo o “consentimento informado” e “compensação justa” para os atores quando suas réplicas digitais são usadas ou sua atuação é modificada por meio de IA.

John Piccarreto compartilhou uma experiência recente de escaneamento corporal, que ele descreveu como “suspeita”. Após gravar uma cena em abril, um assistente de produção o abordou. “Ele me disse que eu precisava ser escaneado ou teria que deixar o set”, afirma.

Enquanto a IA ameaça empregos em uma ampla variedade de setores, de atendentes de call center até pilotos, os membros do SAG-AFTRA têm preocupações específicas sobre o uso indevido de suas representações digitais.

Kreuzer questiona: “será que eles poderiam me colocar em uma situação sexual com outra pessoa escaneada digitalmente?” Devido ao potencial de um futuro distópico como este, Piccarreto diz que agora sente que “vendeu sua alma ao diabo” ao permitir ser escaneado.

Após passar por todo o processo de digitalização, as diárias que ele esperava ter desapareceram. Um trabalho de 26 dias foi reduzido para apenas seis. Ele acredita que o estúdio o enganou, junto com cerca de 200 outros atores, com a promessa de mais trabalho.

“A maior preocupação é que isso acabará tirando o emprego de todos, pois seremos substituídos por criações virtuais”, alerta Kreuzer.


SOBRE A AUTORA

Jessica Goodheart é repórter sênior da Capital & Main. Ela já escreveu para o Los Angeles Times, o L.A. Reader e a UPI, entre outr... saiba mais