Futuro será feito de perguntas (e não de respostas prontas)

André Alves e Lucas Liedke, da float, falam dos traumas coletivos e das projeções para o futuro em novo livro

Crédito: beemore/ iStock

Camila de Lira 5 minutos de leitura

Transformações digitais, crises econômicas, guerras intermináveis… Acrescente a essa lista a pandemia de Covid-19, a rapidez do digital e o aquecimento global acelerado. Se o presente já está caótico, imagine o futuro.

A sociedade passou e continuará passando por um turbilhão de traumas coletivos. Mas, como lidar com eles para garantir a sanidade nas próximas décadas? Chegou a hora de o mundo sentar no divã. É isso que motiva a obra “Vibes em Análise: Psicanálise para Escutar as Vibrações da Cultura Contemporânea”, novo livro de Lucas Liedke e André Alves, psicanalistas, pesquisadores e fundadores da float.

Lucas Liedke (esq.) e André Alves (Crédito: Divulgação)

Nos últimos anos, o planeta passou por inúmeras situações “sem precedentes”. Um verdadeiro lago dos cisnes negros (termo usado no mercado financeiro para eventos fora do padrão). “Estamos na era da incerteza, da exaustão, das crises. Isso está presente na cultura. Precisamos entender como lidar com elas, porque são coisas que não vão embora tão cedo”, afirma Liedke.

A psicanálise ajuda a desvendar o “mal-estar do mundo”. A float é uma consultoria de estratégia e pesquisas comportamentais que se guia pelas teorias psicanalíticas para criar cenários futuros. Com referências que vão de Freud e Lacan a Byung-Chul Han e Maiara e Maraisa, Liedke e Alves tentam encontrar os fios soltos que ajudam a formar as tendências. Ou melhor, as vibes

As vibes são os fenômenos que explicam comportamentos e que mostram para onde essas ações podem levar. Quase como os sintomas da psiquê coletiva. Um dos exemplos de vibes analisadas pela dupla na float é o viralismo, aquilo que está por detrás do conteúdo viral. Seguindo a tese de ambos, o viralismo é “o empuxo que nos convoca a fazer parte de qualquer acontecimento” em postagens nas redes sociais.

Antes de serem psicanalistas, os dois pesquisadores atuaram no mercado publicitário e tinham interesse no que movia as audiências. As conversas informais sobre a psiquê levaram aos estudos e também a criar o modelo de pesquisa de tendências que a float usa. “Os métodos atuais, de modelos demográficos e teorias geracionais, são insuficientes para lidar com os dias de hoje. Está tudo mais fluído”, afirma Alves. 

Para chegar às vibes, os pesquisadores fazem recortes sobre o sentimento coletivo. No que Alves brinca ser “o pesadelo de Bauman” – em referência ao foi sociólogo e filósofo Zygmunt Bauman, autor de "Amor Líquido" e "Modernidade Líquida".

“As pessoas estão muito menos interessadas em seguir tendências e muito mais interessadas em incentivar as vibes, inclusive as bad vibes”, aponta Alves. 

O poder real da psicanálise como força construtora e reconstrutora do futuro está na sua capacidade de levantar questionamentos.

Especializados em analisar a cultura pop e jovem, Liedke e Alves usam as redes sociais para conversar com o público e aproximar suas teses da audiência. Além disso, usam a newsletter e o podcast Vibes em Análise para abrir as pesquisas para as pessoas. E foi a partir do podcast que veio o livro, publicado pela Companhia Editora Nacional.

A publicação aprofunda 15 dos principais episódios do podcast da float. Segundo Liekde, o objetivo de levar o áudio para as páginas foi, em parte, para estimular conversas e estudos. Mas também partiu da audiência, que dizia transcrever o podcast para anotar as referências feitas ali.

No fundo, há a vontade de captar a atenção completa das pessoas. “Tem diferenças entre ouvir um episódio e ler um livro. A leitura gera um pouco mais de reflexão, até pelo tempo que demanda. Queremos suscitar reflexões e colaborar para as pessoas estarem mais atentas e conscientes”, explica Liedke.

Na visão de Alves, trata-se de estimular o pensamento crítico. “A sociedade está terceirizando o pensamento crítico para o ChatGPT ou para os influenciadores. Precisamos recuperar a sensibilidade de se afetar e de formar nosso conhecimento.” 

O DIVÃ ONLINE DA SOCIEDADE 

De olho no que é essencialmente contemporâneo, os autores analisam temas como a superexposição, o cancelamento, os relacionamentos digitais e o hiperconsumo. Ou seja, os sintomas do impacto profundo da tecnologia na sociedade, como explicam os fundadores da float.

Desenvolvida por Sigmund Freud, a psicanálise surgiu em um período de extrema transformação da sociedade. No final do século 19, o mundo passava pela Segunda Revolução Industrial, por um processo de urbanização desenfreada, difusão da energia elétrica e início das telecomunicações. Na hora em que o planeta pisou no acelerador, os anseios gerados fizeram o conhecimento se voltar para os mistérios da mente humana.

O fim do mundo é uma narrativa sedutora que rouba a capacidade de ação e nos coloca no lugar de passageiros, e não de motorista da história.

Dadas as devidas proporções, a sociedade vive um momento parecido de disrupções e formatos de tecnologia. Não à toa, aumentou a procura por temas relacionados ao bem-estar individual e à saúde mental. Nas redes sociais, o assunto virou pano de fundo para discussões sobre terapia e transtornos psicológicos, mas também para conteúdos que promovem a “superação” e a “positividade sem limites”.

Observando essa demanda, Liedke e Alves passaram a falar mais de psicanálise em suas redes. O primeiro, por exemplo, posta vídeos no Instagram nos quais compartilha memes, além de fazer vídeos sobre psicanálise. O segundo tem um canal no TikTok onde faz análises de personagens de séries populares como "Succession" e "The Last of Us".

Como participantes e críticos do mundo digital, ambos têm que lidar com muitas das vibes sobre as quais escrevem. O próprio posicionamento sobre saúde mental, nesse momento, se equilibra na linha tênue entre bem-estar e produtividade.

Crédito: float

“É uma conversa de que você precisa performar bem, sempre produzir bem. A vida é mensurada pela sua utilidade e sua capacidade produtiva”, aponta Alves.

O maior desafio que a dupla enfrenta no dia a dia é não se deixarem levar pelas "bad vibes”. “O fim do mundo é uma narrativa sedutora que rouba a capacidade de ação e nos coloca no lugar de passageiros, e não de motorista da história”, diz Alves. 

O poder real da psicanálise como força construtora e reconstrutora do futuro está na sua capacidade de levantar questionamentos. “Está todo mundo aqui levantando mais perguntas do que respostas”, afirma Liedke.

Em um momento no qual até o teclado do celular completa o que se escreve, há força em formular perguntas. Mesmo as sem respostas, as sem rodeios, as sem pé nem cabeça. Todas ajudam a se preparar para o próximo caos.


SOBRE A AUTORA

Camila de Lira é jornalista formada pela ECA-USP, early adopter de tecnologias (e curiosa nata) e especializada em storytelling para n... saiba mais