Tecnologias da memória
Aqui em casa, sempre fomos de Natal. Essa época do ano traz muitas expectativas para mim. É quando consigo reunir os melhores amigos, mesmo aqueles que não consegui acompanhar tanto durante o ano.
É também tempo de renovar os contratos que fiz (afetivos, políticos, pessoais), realizar aquela retrospectiva dos últimos 12 meses e me preparar para um novo ciclo. É nessa energia que escrevo esta coluna.
Tenho insistido que a maior urgência do nosso tempo é diminuir as desigualdades e amenizar os impactos de uma catástrofe iminente. Como as tecnologias, que tomaram um lugar tão central nas nossas vidas, poderão ser ferramentas úteis para atingir esse propósito?
Mais do que isso: que movimentos e pessoas estamos apoiando e mobilizando para imaginar um futuro mais próspero para todos?
Um dos eventos mais marcantes do meu ano foi o seminário Memória, Reconhecimento e Reparação, promovido pelo Instituto Ibirapitanga, com curadoria de Luciana Brito.
Foi muito bom estar como ouvinte, estudante, aprendiz. Ali escutei as ideias e histórias de mulheres e homens mais velhos, com experiências tão diversas e que me chamaram a atenção para o propósito do trabalho que venho fazendo.
Esse encontro aconteceu na região portuária do Rio de Janeiro, onde desembarcaram mais de dois milhões de africanos nos mais de três séculos de duração do regime escravagista. Ali também está presente o maior cemitério de pessoas escravizadas das Américas.
Nossos corpos vibram dor e memória na Pequena África do Brasil. Mas também vibram políticas, estéticas, tecnologias.
Era esse o sentimento dos debates que presenciei. Os intelectuais negros que estavam ali se perguntavam: como a memória pode ser uma ferramenta, um caminho central para a promoção de políticas reparatórias que reconheçam finalmente o genocídio corrente que vive o povo negro no Brasil?
Entendemos que só o reconhecimento e a reparação poderão promover políticas efetivas que tenham consequências
que movimentos e pessoas estamos apoiando e mobilizando para imaginar um futuro mais próspero para todos?
concretas na vida das pessoas. Saí do evento com questões ecoando: será que as tecnologias podem contribuir para reconheci- mento, memória e repara- ção? Quais as tecnologias de memória estamos articulando? Quem estará comprometido com essa missão nos próximos anos?
Sabemos que liderar tecnologias são metas importantes do capitalismo e controlar dados, dispositivos e serviços digitais concede poder político, econômico e cultural a países, grupos sociais e empresas.
Isso não quer dizer que as tecnologias determinam completamente o curso da sociedade. Ao contrário, são os grupos sociais que moldam as direções que as tecnologias seguirão. É importante entender que esses grupos estão em disputa, ainda que desigual.
Nesse mesmo seminário, encontrei pela última vez neste plano o mestre Antônio Bispo dos Santos, que faleceu recentemente. Ele abriu o evento ao lado de Conceição Evaristo, com quem já fiz companhia em outros textos aqui.
Nêgo Bispo e Conceição falam do silêncio imposto a gerações de povos que confluem hoje em afroindígenas. Esses povos vêm quebrando o silêncio, assumindo a disputa e recusando seu próprio fim.
Nêgo Bispo fala da importância do ato de circular – no samba, na capoeira, na gira, no reggae. Rodar é uma das técnicas mais antigas, fundadas e difundidas por povos originários. Deve ser motivo de reflexão sobre nosso modo de ser e usar as tecnologias que estão mais ou menos disponíveis, a depender de seus níveis de vigilância e captura.
Que circularidades vamos mobilizar para 2024? Quais os retornos que teremos que fazer? Que avanços vamos disputar?
2024 é também ano de eleição nos mais de cinco mil municípios do Brasil. Certamente, viveremos novos (e mais complexos) casos de desinformação, de manipulações digitais, de corrupção, de falta de transparência pública ou de vigilância algorítmica.
como a memória pode ser uma ferramenta para a promoção de políticas reparatórias que reconheçam o genocídio que vive o povo negro no Brasil?
Por isso, vou terminando o ano botando fé nessa massa que quebra o silêncio, que conflui para a reparação, que sobrevive através de memórias ancestrais.
Escuto ecos das vozes mulheres de Conceição Evaristo e desejo um ano novo com mais segurança para nossos jovens negros, mais saneamento básico para o povo favelado, mais saúde para mulheres e meninas, mais direitos civis para a população LGBTQIAPN+.
Desejo também que possamos, todos aqueles comprometidos com a democracia, criar e sustentar tecnologias que considerem outras subjetividades, outros usos e novos futuros.
Com Salloma Salomão, aprendi que, para que qualquer coisa exista no mundo, foi preciso imaginá-la antes. Minha proposta para você é essa: imaginar um 2024 até o limite da imaginação, sem se preocupar se será possível.
Assim, talvez, poderemos superar nossas limitações mais estruturais e sonhar com uma outra realidade possível.
E beba água. Vai fazer calor.