Será que a IA vai mudar o paradigma de “homo sapiens” para “homo sentient”?
O termo homo sapiens talvez não seja suficiente para definir quem somos como espécie e para definir o que temos além do saber e do racional
Passei os últimos dias imerso no South by Southwest (SXSW), respirando criatividade, arte e inovação. O festival é uma fonte viva de inspiração para quem quer evoluir e adquirir um olhar crítico sobre diversos temas – não apenas sobre tecnologia.
Uma palestra que achei sensacional foi “The Singularity Is Nearer” (A singularidade está mais próxima), com Ray Kurzweil. Ele é inventor, pensador e futurista, além de ser um dos nomes em alta em debates sobre inteligência artificial. No painel, ele foi entrevistado pelo jornalista Nick Thompson, CEO da "The Atlantic".
Kurzweil entrou no palco com seus clássicos suspensórios e um Rolex dourado do Mickey. Para alguns, ele é uma figura mítica no universo de IA, o “Nostradamus da Singularidade”. Para mim, um belíssimo cientista, bem relacionado na comunidade de IA, próximo do falecido Marvin Lee Minsky, o co-fundador do Laboratório de Inteligência Artificial do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT).
A fala de Kurzweil começou com uma ironia. Ele é autor do livro “Singularity is Nearer”, concluído há um ano e meio. Não houve tempo suficiente para cobrir toda essa nova onda de IA generativa. O Nostradamus da IA, que previu a singularidade, viu uma tecnologia relevante surgindo tão rapidamente no mundo que não teve tempo de cobri-la em seu último livro.
O jornalista da "The Atlantic" perguntou: “você previu que em 2029 o computador passaria o teste de Turing. Com essa nova geração de IA, que passou em uma série de testes, revisaria sua previsão? Já chegamos lá?”. E a resposta foi: “não. Mesmo que tenha passado no teste de Turing, o teste de definição de Turing não é preciso”.
Ao meu ver, Kurzweil não é o único a ter essa opinião. É um certo consenso entre os principais cientistas na vanguarda de IA que o teste de Turing não é suficiente e foi feito muitos anos atrás, em um contexto insuficiente e defasado.
Alguns até propõem uma evolução para o teste, como Mustafa Suleyman, pesquisador, ex-chefe de IA aplicada na Google DeepMind e atual cofundador da Inflection AI. Suleyman sugere que a nova versão de um teste de Turing seja o desafio de dar US$ 100 mil para uma máquina e ver se ela consegue ganhar US$ 1 milhão.
Kurzweil segue seu pensamento dizendo que ele define inteligência artificial geral (IAG) como “emulate any human being”. Ou seja, fazer o que qualquer ser humano pode fazer. Segundo ele, “não há nada que matemática e computação não possam aprender e copiar”.
Em seguida, o jornalista pergunta: “e a consciência, Ray?”. E ele responde que a consciência não é algo científico, afirma com absoluta certeza que é algo que não conseguimos provar.
Isso me faz lembrar o que aprendi com outra cientista no campo da psicologia, Amélia de Carvalho. Ela dizia: “absolutismos são fugas da realidade”. Acredito que talvez surpreendamos Kurzweil em 25 anos com questões que a singularidade não conseguirá responder. Ou talvez nem queiramos que a IA responda.
Sou mais alinhado com o que Yuval Harari, autor do best-seller "Sapiens", coloca, com simplicidade, em uma de suas entrevistas: para ele, enquanto inteligência é sobre resolver problemas e atingir objetivos, consciência é sobre sentir coisas.
Para Kurzwiel, os LLMs são extensores do cérebro e ele não enxerga singularidade sem ter o computador conectado ao cérebro humano.
As máquinas não têm sentimentos e talvez nunca venham a ter. São racionais, são códigos. Podem emular sentimentos, mas não terão “skin in the game” (algo como "arriscar a própria pele"), como seres humanos têm, principalmente quando enfrentam a dor e a morte.
Trago aqui mais insights da palestra de Ray Kurzweil para refletirmos juntos. Segundo ele, com o avanço da ciência, a cada ano que passa, conseguimos ganhar mais anos de vida. Por volta de 2029, esse avanço da medicina nos trará mais anos de vida do que o um ano de estudo que passou.
Kurzweil disse para todos que estavam na plateia que, se formos diligentes, viveremos 500 anos. Teremos, por exemplo, testes de vacinas em ambientes biológicos simulados que replicarão o ser humano em ambiente virtual. Disso virão os remédios do futuro.
CONEXÃO HOMEM-MÁQUINA
Sobre o tema criatividade, ele defende que os computadores serão capazes de testar todas as possibilidades de alguma coisa, muito rapidamente, e criar algo que não existe. Veremos a ascensão dos nanobots e a ascensão da conectividade máquina-cérebro.
Segundo o cientista, os LLMs (grandes modelos de linguagem, na sigla em inglês são extensores do cérebro e ele não enxerga singularidade sem ter o computador conectado ao cérebro humano.
O curioso, a meu ver, é que, a partir do momento em que o computador está conectado ao nosso cérebro, não será ele que nos ultrapassará, mas uma figura biônica de homem + computador. E isso vai de encontro ao cenário “skynet terminator” que muitos de nós conectamos quando pensamos em singularidade.
Me identifico muito mais com a IA sendo uma inteligência aumentada do que uma inteligência artificial que nos substituirá, como a escola do enxadrista Gary Kasparov. Em 1997, foi marketeado que Kasparov, ícone do xadrez, perderia para o computador da IBM. Mas, como Kasparov bem apontou, na prática ele perdeu para uma equipe de dezenas de engenheiros nos bastidores daquela máquina.
A partir daí, o enxadrista fundou uma nova modalidade do jogo, onde homem e máquina competem contra outra dupla igualmente biônica.
Eis então que, no final da palestra, alguém da audiência questiona como colocaremos uma IA em nosso cérebro se ela é uma "caixa preta" e não sabemos ainda o que acontece nessas redes neurais.
Kurzweil não respondeu dizendo que as pessoas saberão o que acontece nessas redes neurais, mas usando a palavra “acreditarão” (“they will trust”). Acreditar sai do campo do saber e entra no campo da fé. Acreditamos em Deus, em dogmas, em pontos que nos oferecem sentido, mas não necessariamente são provados pela ciência. Já o saber é concreto, provado, conhecido, documentado.
Minha conclusão, depois de tantos insights valiosos, é que sempre que escuto Kurzweil me forço à reflexão – diferente do que ele coloca – de que a IA é uma projeção do ser humano (e da mente humana). Além disso, quanto mais avançamos no conhecimento da IA, mais avançamos no conhecimento sobre nós mesmos.
Kurzweil define inteligência artificial geral como “emulate any human being”, ou seja, fazer o que qualquer ser humano pode fazer.
Em uma curva exponencial com um detalhe diferente do que Kurzweil coloca: para ele, a IA chegará na totalidade humana. Já a minha intuição (sem ciência, mas nem por isso deixamos de opinar) é que esta curva nunca encostará no “1”, nunca chegará integralmente no que nos torna únicos.
Vejo que IA se desenvolve em curva exponencial rumo a replicar a mente humana, mas que sempre esteja a uma distância do que nos torna humanos, únicos, indivisíveis. Até porque homem + máquina têm mais em jogo para vencer do que apenas máquina.
O termo homo sapiens talvez não seja suficiente para definir quem somos como espécie e para definir o que temos além do saber e do racional. Gosto do que traz Max Tegmark, cosmólogo sueco e professor do MIT, que talvez a IA nos mostre que precisemos rebatizar o “homo sapiens” (homem que sabe), para “homo sentient”, que, traduzindo do latim significa “homem que sente”.