Tá todo mundo errado, mas o que nos levou a essa crise da influência?

A propagação de desinformação constante é só a ponta do iceberg de uma crise de confiança decorrente de valores e práticas do marketing de influência

Crédito: Fast Company Brasil

Nayara Ruiz 6 minutos de leitura

Na última semana explodiu uma discussão em torno de um caso grande e grave de desinformação que começou a acontecer ano passado. Milhões de pessoas estão sendo impactadas por mais de 100 criadores de conteúdo e celebridades que foram contratadas por uma assessoria que promete “ajudar a receber o salário-maternidade” quando, na verdade, o benefício é gratuito.

Quem morde a isca acaba deixando para trás 30% do benefício, que vai direto para o caixa da tal empresa, além de compartilhar muitos dados pessoais.

Acontece que este é um benefício concedido gratuitamente pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para quem se afasta de suas atividades laborais por motivo de nascimento de filho, aborto não criminoso, adoção ou guarda judicial para fins de adoção.

Em nota, o órgão alerta sobre canais não oficiais e afirma que “não utiliza intermediários para a concessão do benefício e nem cobra multas ou valores adiantados para que o salário-maternidade seja liberado”.

os interesses dos criadores de conteúdo e das comunidades que eles criaram começaram a se perder.

Não é a primeira vez que casos como este circulam pelas redes e pela imprensa. Já teve creator fitness fazendo propaganda de chá emagrecedor jamais comprovado cientificamente, recomendações de investimento duvidosas ou fraudulentas e até jogos de aposta com promessas de retorno certo que podem gerar vícios e sérios problemas financeiros.

E, aqui (importante ressaltar), estou falando de gente contratada por empresas para divulgar produtos ou serviços que podem mais prejudicar do que ajudar as pessoas. Não estou falando de gente má intencionada que engana de propósito. 

É fato que todo mundo está errado. A empresa, obviamente, que oferece esse “serviço”; o creator, que topou passar a informação adiante; mas também toda uma cadeia que trabalha nos bastidores de uma economia e que tem, sim, responsabilidade em permitir que esse tipo de enganação aconteça.

UMA INDÚSTRIA MILIONÁRIA

Nos anos 2010, uma indústria começou a nascer a partir de um único objetivo: aumentar o resultado de impacto das marcas no ambiente digital. Evolução temporal do marketing de endosso, o marketing de influência é uma disciplina da publicidade para fazer as empresas serem percebidas em territórios que talvez nunca conseguissem chegar.

Com pessoas compartilhando crenças, dores, realidades, sonhos e vivências, comunidades digitais foram se formando em torno de indivíduos que passariam a representar centenas, milhares, milhões de outras pessoas que se identificavam com aqueles mesmos ideais.

De completos anônimos, passaram a movimentar multidões e a atrair atenção e interesse de marcas com apetite para aumentar seus resultados fazendo menores investimentos.

Crédito: Delmaine Donson/ GettyImages

O que aconteceu dali em diante foi que todo um ecossistema passou a emergir a partir do que fazia sentido para as marcas. Agências de influenciadores surgiram para substituir o papel do agente, que negociava os valores, cuidava da parte burocrática com os contratos, o financeiro e, claro, garantia que os resultados e métricas estipulados pelo contratante seriam entregues.

Daí começaram a surgir as ferramentas de marketing de influência, com o papel de conectar influenciadores e marcas, mas sempre priorizando aquilo que a marca pede. Afinal, o cliente tem sempre a razão, não é mesmo? 

Também apareceram ferramentas de analytics, insights e medição de retorno focadas em quem? Isso mesmo. Nas marcas.

a pressão por engajamento e lucro roubou o verdadeiro propósito da influência.

Dentro das estruturas delas e das agências de publicidade, as coisas também foram se modificando para dar ainda mais potência às campanhas e estratégias de awareness, consideração, conversão, advocacy e tudo o mais que fizesse o ROI (retorno sobre o investimento) melhorar.

Acontece que, em meio a isso tudo, os interesses não apenas dos criadores de conteúdo, mas também daquelas comunidades que eles criaram, começaram a se perder. Junto com a chegada dessa nova disciplina publicitária, iniciava também uma jornada pelo labirinto da autenticidade, onde a pressão por engajamento e lucro roubou o verdadeiro propósito da influência. 

DEVERES E RESPONSABILIDADES

Contratos assinados com marcas passaram a ser métrica de sucesso. Em vez de autoridades em um nicho, os criadores passaram a ser vistos como banners digitais.

A propagação de informações enganosas em busca de lucro rápido rouba espaço da busca pela conexão genuína. Não acho que o marketing de influência seja o problema, mas a forma como a engrenagem funciona, sim.

Vejo muitas discussões sobre regulamentação e concordo que ela é importante e necessária, assim como a profissionalização e evolução do setor. Mas, antes disso, há que se repensar em como esse ciclo funciona e quem está no centro dele.

A creator economy está começando a tomar um tamanho gigantesco lá fora. Várias empresas centradas nos criadores estão surgindo e a descentralização de plataformas que a web3 nos proporciona é mais que uma realidade.

Créditos: Polinmr/ iStock/ The Registi/ Unsplash

Já parou para pensar que o Facebook e o Instagram mais parecem uma vitrine de serviços e produtos do que um lugar onde você se conecta com outras pessoas ou é impactado por alguém com quem você se identifica?

Faça o teste. Quantas vezes você pula um story ou rola o feed mais rápido quando percebe que é propaganda? Como diz um grande amigo, Marcelo Salgado, “a gente desenvolveu um adblock no olho”.

Será que se essas mais de 100 pessoas estivessem conseguindo fazer dinheiro por meio daquilo que acreditam, elas teriam colocado os interesses de uma marca acima de seus próprios e compartilhado uma informação que certamente prejudicou milhões de pessoas?

Aposto que a maioria nem sequer se perguntou se aquilo estava certo ou errado antes de gravar a publi. Só foi no embalo e no fluxo. Isso se chama irresponsabilidade. Não dá para estar à frente de uma comunidade sem:

  • checar as informações e garantir que não vai passar adiante algo que pode prejudicar as pessoas;
  • transparência sobre as intenções e motivações por trás do conteúdo compartilhado;
  • manter a coerência entre as palavras e as ações;
  • respeitar e valorizar aquelas pessoas que te dão uma das coisas mais escassas da atualidade, que é a atenção;
  • ser verdadeiro naquilo que fala, no que diz acreditar, fazer ou chancelar;
  • colocar sua comunidade no centro e defender valores e princípios importantes para essas pessoas.

Agora, o mínimo é que todos façam uma retratação, arquem com as consequências determinadas pelo Código de Defesa do Consumidor e pelo Conselho Nacional de Autoregulamentação Publicitária (Conar) e direcionem as pessoas para onde elas realmente devem ir.

Enquanto o INSS aciona a AGU (Advocacia-Geral da União), a empresa acusada fez uma publicação de “esclarecimento“. Negou utilizar os dados coletados para qualquer outro objetivo que não o requerimento do benefício, mas nem ao menos citou o fato de cobrar por algo que não tem custo algum. 

Todas as informações, regras, cálculos e passo a passo para a solicitação do benefício estão disponíveis na página oficial do INSS através deste link:

https://www.gov.br/inss/pt-br/assuntos/nao-caia-em-golpe-salario-maternidade-e-apenas-no-inss


SOBRE A AUTORA

Nayara Ruiz é comunicadora social especialista em marketing digital e sócia da nAÇÃO, que atua em projetos de impacto social. saiba mais