Apple Intelligence mostra como a Apple ainda pode vencer na IA
A IA da Apple não tem que ser a mais inteligente de todas. Ela só precisa ofuscar a concorrência e abafar as outras conversas
Vamos falar sobre o futuro. Um futuro onde, apenas conversando com seu telefone, você pode marcar compromissos, definir alarmes, tocar músicas, verificar o preço de uma ação e conferir a previsão do tempo.
Estes são exemplos das novas capacidades de inteligência artificial da Apple, anunciadas nesta segunda-feira (10 de junho) em seu encontro anual de desenvolvedores (World Wide Developers Conference). São também exemplos das novas capacidades de IA da Apple, anunciadas em 2011 com a introdução da Siri. Ah, como avançamos!
Não é segredo que a Apple passou os últimos atrás na corrida da inteligência artificial. Enquanto a Microsoft investiu US$ 10 bilhões na OpenAI, a Apple estava focada no Vision Pro.
Segundo a Bloomberg, a Apple só acelerou os gastos em sua própria pesquisa de IA no final do ano passado, destinando US$ 1 bilhão por ano para o projeto – o que parece muito dinheiro, até a gente perceber que isso representa apenas 1/383 da receita total da empresa e cerca de um centésimo de seu lucro.
A Apple está atrasada e correndo para recuperar o tempo perdido. Não está atrás apenas da OpenAI – que fornecerá uma série (não especificada) de suportes para os recursos de IA da Apple por meio de uma nova parceria.
Se observarmos o que a Apple realmente entregou, ela também está atrás da Samsung, que se associou com o Google para oferecer recursos nos celulares da linha Galaxy, como a opção de circular qualquer coisa na tela para pesquisar, ou ainda, traduzir chamadas em tempo real.
Além do conjunto de recursos da Siri de 2011, a Apple dedicou boa parte da apresentação para mostrar algumas ferramentas básicas de IA generativa integradas, que variam desde enviar imagens geradas em Mensagens até escrever e-mails no Mail.
Também demonstrou uma série de experimentos com o Apple Pencil, que poderiam suavizar sua caligrafia ou completar equações matemáticas enquanto você as escreve. Estas são curiosidades de UX (experiência do usuário, na sigla em inglês), sem dúvida, mas parecem ferramentas construídas mais para demonstrar tecnologia do que para resolver problemas reais.
A CARTA NA MANGA
No entanto, a empresa não está interessada na abordagem típica da IA, explicou Craig Federighi, vice-presidente sênior de engenharia de software, durante a apresentação.
A Apple quer construir “um modelo de inteligência pessoal” no seu celular que “se baseia no contexto pessoal”. A implicação é que, como a Apple entende você melhor do que qualquer outra plataforma de IA, ela vai superar os concorrentes no longo prazo.
A Apple não precisa ter o melhor LLM para dominar a IA. Ela só precisa dominar a coisa a que a IA se refere.
A Apple realmente ofereceu apenas um exemplo do que isso significa, e foi tão decepcionante quanto revelador. Kelsey Peterson, diretora de machine learning e IA da Apple, demonstrou um exemplo em uma apresentação gravada.
Peterson perguntou: “Siri, quando o voo da minha mãe vai chegar?” Siri cruzou os detalhes do voo encontrados no e-mail e rastreou o voo online. Ao perguntar “qual é o nosso programa para o almoço?”, Siri encontrou o local enviado pela mãe em uma mensagem. Ao finalizar a conversa com, “quanto tempo levará para chegarmos lá a partir do aeroporto?”, um mapa apareceu com informações sobre o trânsito.
Não se engane: não há nada tão impressionante acontecendo aqui em termos de tecnologia LLM. Estas são perguntas diretas, feitas com linguagem muito específica, que têm respostas perfeitamente claras.
A IA da Apple não fez nada para sintetizar ou sugerir algo especial a partir desta consulta, como “lembre-se de comprar lírios para sua mãe, os favoritos dela, mas não vá ao Flower Mart porque estavam murchos da última vez.”
No entanto, o que é impressionante é o alcance da Apple. Ela pode vasculhar seus e-mails e Mensagens (e, eventualmente, vários outros aplicativos via APIs especializadas que a empresa anunciou) para encontrar a resposta que precisa.
A Apple tem acesso a uma quantidade incrível de informações sobre seus clientes. Quando entregue a um grande modelo de linguagem (LLM, na sigla em inglês), ela pode refrescar sua memória quase instantaneamente sobre qualquer coisa.
UM CONJUNTO MASSIVO DE DADOS
Este alcance é a vantagem da Apple na grande corrida da IA – pelo menos nos Estados Unidos. Recentemente, a Microsoft demonstrou que poderia gravar cada momento da sua tela do computador para servir como uma memória de IA, uma ideia (extremamente assustadora) que pode ser poderosa para contextos de trabalho, mas não atinge o computador mais íntimo do mundo: o celular no seu bolso.
A IA da Apple pode vasculhar e-mails, mensagens e vários outros aplicativos para encontrar a resposta que precisa.
A fortaleza da Apple em torno do recurso Mensagens é particularmente poderosa nos EUA. A Apple tem cerca de 60% do mercado local de smartphones e os usuários de iPhone preferem (a maioria) suas bolhas azuis.
A Apple não precisa ter o melhor modelo de linguagem (LLM) para dominar a IA. Ela só precisa dominar a coisa a que a IA se refere. E os anos de histórico pessoal de mensagens dos usuários são um manancial incrível de informações.
Mas ninguém parece estar se perguntando como é que esses sistemas de IA estranhos e desconhecidos estão analisando suas mensagens privadas. Estamos confiando cegamente que a Apple usará as informações para nosso benefício.
ACESSO É PODER
Ao mesmo tempo em que aproveita essa imensidão de dados (vamos ignorar as alegações de práticas anticompetitivas por um momento), a Apple também se protege contra a dependência de qualquer provedor de IA em particular.
Assistentes de IA costumar usar vários modelos ao mesmo tempo, basicamente, fazendo perguntas a diferentes sistemas de IA para obter uma resposta, ou direcionando perguntas mais simples para IAs que são mais baratas de consultar porque exigem menos poder de processamento.
Por enquanto, a Apple assinou uma parceria com a OpenAI para usar o ChatGPT em pelo menos algumas de suas ofertas de inteligência. Mas, e a longo prazo?
Não há nada que impeça a Apple de colocar seus próprios modelos em funcionamento, ou de licenciar o poder do LLM de concorrentes, para oferecer sua Apple Intelligence sem que ninguém se importe com o que realmente está rodando por trás dela.
Quem pode desafiar a Apple nesse espaço? O Galaxy é um contraponto interes- sante a considerar com as parcerias certas; o Google já sugeriu como sua IA Bard poderia funcionar no Google Messages (usado em celulares Samsung).
Mas a Samsung nunca verá o interior de plataformas populares de mensagens de terceiros como o WhatsApp (da Meta), que apresentam mensagens protegidas.
Contanto que a Apple possa dominar o celular – e, especialmente, o aparelho conectado ao seu serviço de mensagens proprietário – ela detém o espaço da IA moderna. Ela pode ver uma mais profunda da vida social de seus usuários do que qualquer outro produto ou plataforma.
E se a Apple não conseguir encontrar algo mais importante e essencial para fazer com tudo isso do que obter algumas informações sobre voos, bem, então talvez a Apple Intelligence não seja tão inteligente quanto a empresa quer que a gente acredite.