Um recorte de quem somos

Seguimos vendo marcas que, no meio da onda de causas e boas ações, usam a euforia do festival para desviar o assunto da lição de casa que deixam de fazer

Crédito: Rawpixel/ Freepik

Marcos Medeiros 3 minutos de leitura

O problema de começar um texto com “eu não quero soar como um mau humorado” é que, depois disso, vem um “mas”. Pronto, danou-se. Sabia que eu corria esse risco.

Depois de mais um ano participando do Cannes Lions, se confirma para mim uma tendência humana perigosa de mascararmos a realidade com entretenimento e, neste caso, prêmios. Não me refiro aqui à publicidade, mas à humanidade.

Importante dizer que, sim, muitas das ideias que foram aclamadas são realmente incríveis, como a icônica marca de uísque Johnny Walker, que levou Alaíde Costa, pioneira esquecida da Bossa Nova, para cantar nos palcos de Nova York, promovendo uma importantíssima discussão sobre racismo e retratação.

Ou um aplicativo que, mesmo ainda em fase de aprovação, detecta diabetes por meio da análise da voz da pessoa. Ou ainda um mascote da final do campeonato de futebol americano colegial que, por ser de uma empresa de biscoitos, era comestível. Memorável.

O problema é que a famosa cidade de Cannes, que sedia também o famoso Festival de Cinema, parece ter um apreço pela ficção. Durante a semana, vimos marcas e agências do mundo inteiro que, com mais de 26 mil inscrições, disputaram um lugar no palco, onde centenas de Leões são entregues, endossando ideias que, juntas, sinalizam para onde o mercado caminha.

Entre as noites de premiações e brindes em euros, alguns bons painéis preenchem o dia dos mais de 10 mil participantes, que se revezam nas poltronas com aqueles

se confirma para mim uma tendência humana perigosa de mascararmos a realidade com entretenimento e, neste caso, prêmios.

que cochilam, enquanto se recuperam da noitada anterior, patrocinada por alguma marca global de mídia. Tanto que Kenan Thompson, do humorístico Saturday Night Live, aproveitou um que roncava de forma retumbante para uma piada que arrancou as melhores risadas do auditório.

Palestras como a da incrível nadadora Yusra Mardini, a refugiada que teve a história representada no filme “As Nadadoras”, hoje jornalista responsável pela equipe de refugiados da Olimpíada Paris 2024. Ou a de Jared Spataro, demonstrando uma revolucionária IA para tarefas diárias dentro de um escritório. Além da inspiradora apresentação do CMO da Ab-Inbev, Marcel Marcondes, que mostrou como a Corona se tornou a marca de cerveja mais valiosa do mundo, seguida de outras marcas da mesma companhia.

Saímos desses lugares maiores do que entramos. E com vontade de criar mais e melhor.

Voltando ao território dos prêmios, seguimos vendo marcas que, no meio da onda de causas e boas ações, usam a euforia do festival para desviar o assunto da lição de casa que deixam de fazer. Da marca de luxo pregando consumo consciente até a empresa que mais polui o planeta ganhando prêmio com ideia sobre reciclagem. Irônico é o brinde comemorativo com garrafas de plástico.

No calor das salas de julgamento – das quais já tive a oportunidade de fazer parte –, pressões por resultados acabam cegando o bom senso daqueles jurados que perdem a habilidade de entender que são, antes de tudo, responsáveis por sinalizar o caminho que a publicidade deveria seguir.

Saímos desses lugares maiores do que entramos. E com vontade de criar mais e melhor.

E a bússola se quebra, deixando para as novas gerações um norte equivocado de que aquilo é o que deve ser feito para ganhar reconhecimento profissional. Sempre foi assim. E, de novo, não me refiro apenas ao Cannes Lions. O festival é um recorte de quem somos.

O personagem em quadrinhos Capitão América, por exemplo, foi criado em 1940 para combater a ideia de socialismo. Seu inimigo era, veja você, o Caveira “Vermelha”, que, depois do ataque a Pearl Harbor, ganhou novas missões. Que bela peça de propaganda. Hoje, estaria inscrito na categoria Entretenimento.

Crédito: Marvel Studios

A propaganda corre sempre o risco de usar as causas como um atalho para o prêmio. Se a motivação for usar recursos para levantar discussões necessárias e urgentes como racismo, refugiados, doenças, desigualdade de gênero para gerar mais relevância para a marca, devemos celebrar e premiar as melhores e, assim, dar ainda mais destaque a essas ideias.

Mas devemos ficar mais atentos e questionar aquelas que não fazem o que pregam, e estão mais preocupadas com o post no LinkedIn do que com as causas que dizem defender, só para francês ver.

Honestamente, nunca gostei do Capitão América, um herói bombado em laboratório e criado pelo governo. Prefiro o Pantera Negra.


SOBRE O AUTOR

Marcos Medeiros é Chief Creative Office na agência CP+B saiba mais