Por uma ética corporativa radicalmente humana
Uma ética corporativa radicalmente humana é aquela que protege, respeita e remedia o direito humano de sermos radicalmente quem somos
Talvez seja a primeira vez na história que a discussão lucro X propósito tenha extrapolado os debates dos líderes de bom coração e tenha alcançado as mesas de investimentos e metas de lucratividade das empresas.
Não sou tão jovem assim e, talvez, em meus mais de 20 anos de atuação como operadora do direito, seja a primeira vez que ouço a palavra ética quase que diariamente sendo repetida à exaustão.
Desta vez a palavra não vem conectada aos temas da esfera moral, mas sim aos temas conectados à qualidade da tomada de decisão da alta liderança das empresas e de investidores que decidem os caminhos que o mercado irá percorrer.
Embora seja tudo muito novo e a gente careça de informação relevante no debate público a ética – essa que faz com que nossas decisões considerem seu impacto na sociedade para além do nosso umbigo – é um tema de direitos humanos que está absolutamente conectado ao ESG das empresas e à sua capacidade de gerar valor por meio da criação, sustentação e manutenção de uma cultura organizacional focada na humanidade em sua totalidade.
Nesta coluna que manterei mensalmente, e por meio da qual vocês me dão a honra da leitura e de conversas importantes, questiono em voz alta algumas das nossas contradições humanas, prometendo não apontar caminhos – pois sequer sei para onde estou me direcionando –, mas fazendo um convite ao questionamento que nos leve a pavimentar em conjunto esse mundo onde queremos viver e depositar nossa teimosa esperança em dias melhores.
A FUNÇÃO SOCIAL DAS EMPRESAS
Desde a sua formação, as organizações tiveram como objetivo não apenas a geração de lucro e riqueza, mas também o dever de desenvolvimento social, um objetivo completamente conectado com a sua função social.
No Brasil, a constituição federal trata as atividades empresariais como ferramentas de desenvolvimento social. O texto é expresso no que tange à função social das propriedades privadas, seja em seu artigo 5º, XXIII, ou no artigo 170, II. As empresas, por serem propriedades privadas, não escapam dessa obrigação constitucional.
Essa função social é identificada exatamente pelas externalidades positivas que a empresa deve cumprir, sendo que essa externalidade positiva seguirá diretrizes e decisões do corpo diretivo.
Ou seja, a alta liderança responsável pela condução da organização tem papel fundamental nesse contexto. Essas pessoas, quando na atividade executiva, são agentes sociais responsáveis pela consequência de suas decisões. Portanto, quanto mais, éticas mais socialmente positivas.
Quando falo dessas pessoas como agentes sociais, preciso considerar suas humanidades, e portanto, suas vicissitudes. Não posso isolar cada personalidade e considerar apenas seu lado “bom” quando penso no contexto mercadológico. Isso porque são vários os fatores a serem considerados quando uma decisão precisa atingir o binômino profit and purpose (lucro e propósito).
Negar que decisões ligadas aos negócios precisam passar pelo impacto em lucratividade é negar a realidade das coisas – e isso eu me recuso a fazer.
LOBO BOM, LOBO MAU
Uso a mim mesma como maior objeto de estudo e investigação e consigo perceber as tendências e padrões de pensamento quando, sob mais ou menos pressão, é muito mais simples atender as expectativas sociais quando a sustentabilidade financeira da minha consultoria não está em jogo.
Considerar que sou capaz de pensar apenas em números faz com que eu crie mecanismos objetivos para mitigar efeitos negativos de qualquer decisão menos inclusiva.
Gosto de aplicar ferramentas que deem materialidade à líder que quero ser e, para isso, posso me valer de tudo aquilo que o próprio mercado oferece. É aí que chamo atenção para a capacidade que as empresas têm de serem muito mais éticas do ponto de vista social do que de fato são.
Não devemos negar nossa humanidade, mas tratá-la como elemento fundamental para o exercício de uma ética radicalmente humana.
A interconexão das muitas áreas da empresa pode e deve servir à liderança no fornecimento de insumos para que as decisões sejam consideradas levando em conta a própria capacidade humana de ser boa ou má, justa ou injusta, inclusiva ou excludente
Mecanismos de pesos e contrapesos podem ser basilares no apoio à condução de processos de gestão mais éticos, ainda que as decisões sejam tomadas em momento de medo, fúria, pressão externa ou crise.
Não devemos negar nossa humanidade, mas tratá-la como elemento fundamental para o exercício de uma ética radicalmente humana – essa ética que conhece e sabe da nossa insensatez e contradição fundante.
Lembro sempre daquela parábola dos dois lobos:
“Há uma batalha terrível entre dois lobos que vivem dentro de mim. Esses dois lobos tentam dominar o espírito de todos nós. Um é mau. Seus dentes são fortes como raiva, inveja, ciúme, cobiça, arrogância, medo, culpa, ressentimento, avareza, superioridade e ego. O outro é bom. Seu olhar é forte como a alegria, esperança, serenidade, paz, empatia, generosidade, verdade, compaixão, harmonia. A pergunta é: na batalha da vida, qual lobo vence? E a resposta é óbvia: aquele que eu alimentar!”
A capacidade de tomar decisões que impactem negativamente a sociedade e as pessoas é agir para que o alimento ao lobo bom seja dado por meio do envolvimento em práticas corporativas capazes de proteger e respeitar as pessoas e seus direitos e remediar aquelas ações que, por consequência, impactaram negativamente as pessoas e seus direitos, a sociedade e o planeta.
Portanto, não é equívoco afirmar que uma ética corporativa radicalmente humana é aquela que protege, respeita e remedia o direito humano de sermos radicalmente quem somos.