A história de como David Bowie criou um metaverso antes de isso existir

Antes do Horizon Worlds, do Decentraland ou mesmo do Second Life, existia o Bowie World, o peculiar universo online de David Bowie

Créditos: Christina Radevich/ Unsplash/ BowieWorld

Chris Morris 7 minutos de leitura

Muito antes de Mark Zuckerberg publicar uma selfie de seu avatar no Horizon World com a Torre Eiffel ao fundo e em uma época em que o Fortnite era algo inimaginável, David Bowie estava abrindo caminho para o futuro do metaverso.

A BowieNet e o Bowie World foram projetos à frente de seu tempo que vislumbraram o que a internet poderia ser muito antes de avatares fazerem parte das nossas vidas e de fã-clubes poderem acompanhar de perto as celebridades.

Enquanto a BowieNet, o provedor de internet que o músico ajudou a lançar, desapareceu (assim como a maioria dos provedores de internet discada), o Bowie World – um mundo virtual em 3D onde os fãs se reuniam para explorar, conversar uns com os outros e, muitas vezes sem saber, interagir com o próprio artista – sobrevive como uma relíquia online que resistiu ao tempo.

Ambas as empreitadas foram revolucionárias e ofereceram uma amostra do que a internet poderia fazer pela indústria da música. Com o 25º aniversário da BowieNet se aproximando, conversamos com algumas das pessoas chave por trás desses projetos para descobrir como surgiram – e quão envolvido Bowie esteve neles.

CRIANDO A BOWIENET

Nos anos 90, a banda The Cure se juntou a Robert Goodale, um advogado do ramo de entretenimento com fortes conexões com a indústria da música, e a Ron Roy, um produtor multimídia, para construir sua presença online, que incluía um site oficial e venda de produtos. O projeto foi tão bem-sucedido que Roy e Goodale começaram a explorar outras maneiras de aproveitar o mundo online.

Crédito: Reprodução Bowie World

“Começamos a conversar sobre os velhos tempos, quando bandas como os Beatles, The Monkees e Rolling Stones tinham fã-clubes”, conta Roy. “Fizemos o esboço de um plano de como seria um fã-clube online. Foi assim que começamos... com a ideia de um lugar onde você poderia se reunir com pessoas que compartilham os mesmos interesses.”

Com o tempo, a ideia começou a tomar forma e a dupla decidiu experimentar o modelo de um provedor de internet, onde artistas poderiam compartilhar músicas, visões internas do processo criativo e muito mais. Devido à relação de longa data de Goodale com Bowie, o músico foi a escolha óbvia para o projeto.

Crédito: Reprodução Bowie World

“Pensamos: vamos mirar alto. O pior que ele pode fazer é dizer não para tudo. Talvez ache bom o modelo de assinatura do fã-clube e talvez diga que essa coisa de provedor de internet também é legal.”

Roy conta que ele e Goodale acabaram passando três horas com Bowie falando sobre o projeto. Convencer o artista foi mais fácil do que esperavam. “Ele gostou tanto da ideia que disse: ‘qual é o próximo passo?’”, lembra Roy.

“Dissemos que ainda estávamos arrecadando fundos, que essa não seria uma empreitada barata. Alguns dias depois, seu empresário ligou e disse: ‘David quer participar e ser o primeiro investidor’.”

E assim, a Ultrastar, a empresa-mãe do BowieNet, foi fundada.

BOWIENET E BOWIE WORLD

Bowie rapidamente provou ser mais do que um simples investidor, assumindo um papel ativo no planejamento do site. “Ele convocava reuniões. Participava ativamente. Vinha preparado. Tinha ideias sobre como queria que o site fosse, como seria a experiência... ele estava pensando dois ou três anos à frente, imaginando as coisas que poderíamos fazer.”

Crédito: Reprodução Bowie World

O provedor de internet foi lançado em setembro de 1998. O serviço, que custava US$ 19,95 por mês, oferecia aos assinantes desde endereços de e-mail com o domínio @davidbowie.com até acesso exclusivo a gravações, videoclipes e salas de bate-papo. O objetivo era alcançar 25 mil assinantes. No auge da BowieNet, esse número ultrapassou 50 mil.

Um sócio de Roy estava familiarizado com a Worlds, uma empresa que criava mundos virtuais online muito antes de banda larga e chips gráficos avançados se tornarem comuns. Com o crescimento da BowieNet, ele o encorajou a se encontrar com o CEO, Thom Kidrin.

Na época, esses mundos virtuais, nos quais as pessoas interagiam com avatares digitais, eram inovadores. E quando Roy viu o potencial disso, ele soube que tinha que apresentar a ideia a Bowie.

Outros elementos que o artista sugeriu e que foram incorporados posteriormente incluíam painéis ocultos que revelavam fotos e vídeos e uma galeria de suas obras de arte, onde as pessoas poderiam vê-las de perto e, se quisessem, comprá-las.

Até o ano 2000, as vendas de produtos estavam chegando perto de US$ 500 mil – talvez não seja um número impressionante para os dias de hoje, mas era um feito notável para a época.

Kidrin continuou a criar mundos virtuais para outras bandas e marcas. “A Worlds já fazia isso antes de todos”, diz Roy. “Ela veio antes do Second Life. Era o que todo mundo está buscando hoje com o metaverso.”

INTERAGINDO COM OS FÃS

Bowie não queria apenas criar um mundo online, também queria explorá-lo e passar tempo nele. Quando estava em turnê ou gravando no estúdio, ele escrevia um diário que era postado no site da BowieNet, junto com fotos de bastidores.

Além disso, participava frequentemente de bate-papos ao vivo com os fãs, tanto na BowieNet quanto no Bowie World, e também fazia aparições surpresas, pelo menos duas vezes por semana, usando um pseudônimo.

“Ninguém sabia que era ele, a menos que tivéssemos anunciado sua participação”, conta Roy. “Ele visitava as salas e conversava com as pessoas. Mas, como eram interações entre avatares, os fãs não sabiam que estavam falando com Bowie.”

“Há algo de especial em não saber quem a outra pessoa realmente é, apenas ter uma ideia dela”, disse Bowie na época. “É uma experiência quase metafísica... uma sensação extraordinária. Eu sempre gostei de coisas que não entendo completamente.”

Enquanto isso, o Bowie World oferecia uma assinatura premium. Com ela, os usuários podiam ter acesso a um avatar articulado, a trajes personalizados e a uma “área VIP” quando o artista participava dos bate-papos online. Esta última era um pequeno truque da internet antiga.

“Parte do que a Worlds oferecia era a possibilidade de criar várias dimensões, permitindo um número ilimitado de pessoas na área VIP, mas você só veria de 25 a 30 delas ao seu redor”, diz Kidron. “David, como um avatar de transmissão, estava presente em todas as dimensões.”

Crédito: Reprodução Bowie World

Como forma de agradecer aos assinantes da BowieNet, o artista decidiu fazer um show exclusivo para eles em 2002. Para dar início à sua nova turnê, Bowie se apresentou no Roseland Ballroom, em Nova York. Ele tocou o álbum “Low”, de 1977, inteiro e, após trocar de figurino e encarnar sua persona Thin White Duke, cantou todas as músicas de seu novo disco intitulado “Heathen”.

“Ele fez três shows no Roseland Ballroom apenas para os fãs da BowieNet”, conta Roy. “Tivemos que fazer três shows porque tínhamos tantos assinantes que não caberiam todos em uma única noite. Isso mostra o quanto ele estava envolvido.”

FIM DAS ATIVIDADES, MAS AINDA NO AR

Os provedores de internet discada, é claro, rapidamente perderam espaço para os modems a cabo e, em 2006, a BowieNet teve que encerrar suas operações. No entanto, algo interessante aconteceu com o Bowie World: ele permaneceu no ar – e continua até hoje.

Crédito: Reprodução Bowie World

“As pessoas ainda o acessam – são fãs fervorosos de Bowie”, diz Kidrin. “Uma das coisas que a Worlds desenvolveu foi uma ferramenta para que pudéssemos criar mundos no navegador. Quando usuários a hackearam e compartilharam o método de acesso, costumavam me perguntavam: ‘por que você não fecha o site?’. Eu respondia: ‘por quê? Vamos ver o que as pessoas vão criar’.”

O que elas criaram foram seus próprios submundos dedicados a Bowie (e hospedados localmente, sem custo para a Worlds). “Alguns são bem básicos e outros são bastante sofisticados”, afirma Kidrin. “Achei divertido ver os conteúdos criados pelos usuários... isso foi parte do que fez com as pessoas retornassem.”

O LEGADO

Após a morte de Bowie em 2016, ele foi muito elogiado por sua música. Mas muitos também destacaram que suas visões sobre o futuro da internet eram quase proféticas – e seus colaboradores foram os primeiros a reconhecer isso.

Crédito: Reprodução Bowie World

“Intuitivamente, ele entendia que... o download de música era algo inevitável”, lembra Kidrin. “Não poderia ficar limitado a vendas mecânicas de produtos físicos. Quanto mais aprimoramos a experiência com a BowieNet, o Bowie World e shows transmitidos ao vivo, mais atraímos os fãs.”

“Ele era uma daquelas pessoas que você conhece e pensa: não importaria se fosse um curador de museu, um chef ou um professor universitário”, diz Roy. “Ele teria sucesso em qualquer coisa que fizesse na vida.”


SOBRE O AUTOR

Chris Morris é um jornalista com mais de 30 anos de experiência. Saiba mais em chrismorrisjournalist.com. saiba mais