“Banho de natureza”: a nova cara do bom e velho greenwashing
Montadoras, companhias aéreas e de petróleo adoram usar imagens da natureza nos anúncios. Um novo termo descreve essa prática manipuladora
Em agosto de 2022, a Mercedes-Benz lançou uma campanha chamada “Nature or Nothing” (A natureza ou nada, em tradução livre). No vídeo, a marca de carros de luxo mostra uma montagem aleatória de texturas e formas relacionadas à natureza – as veias de uma folha, a célula um de favo de mel, as dobras das pétalas de uma rosa, o desenho de um raio. Aos poucos, percebemos que todas essas imagens remetem ao famoso logotipo da empresa: a estrela formada por três linhas.
A polêmica campanha da linha de veículos elétricos Mercedes EQS foi idealizada pelo escritório mexicano da Leo Burnett, uma agência global de publicidade. Embora a peça não mencione explicitamente o que os carros da marca têm a ver com aquelas imagens, a conexão fica implícita: é como se os veículos estivessem do lado da natureza, apesar de todas as evidências em contrário.
Depois que foi ao ar, o anúncio alcançou o nível de repercussão com que toda marca sonha. Mas a atenção foi negativa, e veio na forma de críticas e de indignação contra a empresa. A internet inteira começou a acusar a montadora de greenwashing.
Aos poucos, foi ficando claro que essa campanha configura um novo tipo de artimanha do marketing, que tenta atrelar a beleza da natureza às supostas virtudes ambientalistas de uma empresa. Não se trata de mero greenwashing, é praticamente um nature-rinsing (ou “banho de natureza”, em tradução livre).
O termo foi cunhado no início deste ano, em um estudo feito pelo Algorithmic Transparency Institute e por Geoffrey Supran, pesquisador associado do departamento de história da ciência da Universidade de Harvard. O conceito descreve o uso sistemático de imagens que evocam a natureza para realçar a “sustentabilidade” da imagem de uma marca.
O estudo examinou quase 34 mil postagens de mídia social de 22 empresas de combustíveis fósseis e descobriu que 97% dos posts de companhias aéreas, 64% dos de montadoras e 56% dos de empresas de petróleo faziam uso de imagens que evocam a natureza.
“É um truque manjado. Acho que os profissionais de marketing sempre apostaram intuitivamente em criar essas associações”, diz Cristel Russell, professor de marketing da Pepperdine’s Graziadio Business School e coautor de um relatório de 2015 sobre essa estratégia.
ANSIEDADE CLIMÁTICA
A campanha “Nature or Nothing” é um exemplo especialmente ofensivo de “banho de natureza”, mas é apenas um exemplo dentre incontáveis postagens e campanhas de outros gigantes dos combustíveis fósseis. Podemos mencionar, por exemplo, as panorâmicas de paisagens intocadas da Lufthansa, o bicho-preguiça sonolento da propaganda da Volkswagen, as imagens do pôr do sol nos parques eólicos da BP, a pergunta da BMW sobre qual é a nossa estação favorita para dirigir, a lagoa de águas cristalinas da Delta, as árvores frondosas da Exxon.
Todas essas imagens proliferam em inúmeros outros anúncios de marcas que mostram sua aliança com a natureza no sentido mais genérico possível.
A chegada de um termo como “banho de natureza” é oportuna pelos piores motivos. As descobertas da pesquisa de Supran abrem nossos olhos não apenas para os esforços de empresas dependentes de combustíveis fósseis para enganar o consumidor, mas também para o elevado nível de "ansiedade climática" que muitas pessoas estão sentindo atualmente. Um “banho de natureza” funciona melhor quando os consumidores estão mais preocupados com o clima ou o ecossistema do que com o salário no fim do mês.
“As questões atuais, como o aquecimento global, podem de fato ter aumentado a conscientização do consumidor e a aceitação da necessidade de consumir de maneira ambientalmente correta, em comparação com outros tempos”, analisa Les Carlson, professor de marketing da Universidade de Nebraska, que pesquisa marketing verde desde o início dos anos 1990.
O uso da natureza, seja para extração e exploração ou para conteúdo publicitário, exige pouca responsabilidade.
Não é por acaso que o relatório de Supran coincidiu com uma avalanche de notícias sobre megassecas, ondas de calor recorde e incêndios florestais. A estratégia atende habilmente as corporações que estão sob crescente escrutínio por seu papel nessa crise.
A sugestão visual de um “banho de natureza” não somente é eficaz para essas marcas como apresenta outra vantagem: é fácil de implantar e difícil de regulamentar. O uso da natureza, seja para extração e exploração ou para conteúdo publicitário, exige pouca responsabilidade.
As agências reguladoras, principalmente na Europa, usaram pesquisas sobre greenwashing para restringir a disseminação de publicidade enganosa. Mas apenas na França, no Reino Unido e na Austrália foram introduzidas regulamentações que focam especificamente no uso da mensagem visual ambígua que define o tal nature-rinsing.
LEGISLAÇÃO E REGULAMENTAÇÃO
O uso global dessas imagens em plataformas de mídia digital só aumenta as complicações. “Precisamos de legislação, não apenas de regulamentação”, defende Robbie Gillett, da Adfree Cities, uma organização do Reino Unido que faz campanha contra a influência da publicidade corporativa.
O grupo ganhou recentemente um processo contra o HSBC, forçando o banco a remover uma propaganda enganosa que capitalizou a crise climática e a COP27 (a cúpula da ONU sobre mudanças climáticas), enquanto continua financiando empresas que expandem suas emissões de carbono.
qual o tamanho do voto de confiança que devemos dar às indústrias que afirmam ter interesse em remediar a catástrofe climática?
A qualidade sutil e onipresente dos “banhos de natureza” certamente contribui para a já forte defesa da legislação sobre o marketing das empresas de combustíveis fósseis em geral. Também levanta algumas questões fundamentais sobre o que pode ser considerado razoável na publicidade dessas empresas.
Afinal, se algo tão banal quanto a imagem de uma árvore é o suficiente para manipular a impressão das pessoas sobre uma marca ou um produto, qual o limite razoável do seu uso publicitário? E qual o tamanho do voto de confiança que devemos dar às indústrias que afirmam ter interesse em remediar a catástrofe climática?
Os “banhos de natureza” podem até não ser uma estratégia nova, mas o surgimento de seu conceito como palavra pode ser inestimável. Será que o termo nos ajudará a enxergar o que há por trás das falsas promessas de rios brilhantes ao amanhecer, de animais fofinhos e peludos ou das folhagens verdes e exuberantes de outros anúncios de empresas de combustíveis fósseis?
“Dizem que o primeiro passo para resolver um problema é reconhecer que ele existe”, lembra Supran. “Dar ao problema um nome que todos conseguem lembrar é certamente um bom começo.”