Como o streaming está matando a verdadeira experiência de ouvir música
O Spotify e outros serviços de streaming estão acabando com a mais universal das experiências humanas
Havia uma jovem que adorava tocar música em frente à sua casa na Eslovênia. Ela observava a Via Láctea ao lado do rio Idrijca, cujos sons acompanhavam sua melodia. Seus dedos se moviam lentamente sobre o estranho instrumento: uma flauta curta com quatro orifícios que seu pai havia feito com o fêmur de um urso.
Ela não sabia que o rio se chamava Idrijca, ou que morava na Eslovênia, pois viveu durante o período Paleolítico, cerca de 60 mil anos antes de palavras como “estrela” ou “galáxia” serem inventadas.
Ninguém sabe o nome dessa menina neandertal que tocava o instrumento musical mais antigo já descoberto. Mas todas as pessoas nascidas desde então estão familiarizadas com o que se pode ouvir naquela noite.
A música é um dos pilares da civilização, que transcende nacionalidades, etnias e diferenças culturais.
Os cientistas acreditam que a música sempre foi uma parte fundamental da experiência humana. É a única linguagem verdadeiramente universal na Terra, e provavelmente fora dela. É um dos pilares da civilização, que transcende nacionalidades, etnias e diferenças culturais enquanto se conecta a algo em nosso cérebro quando nos toca.
Em sua essência, a música permaneceu a mesma, embora tenha evoluído por milênios, tornando-se mais sofisticada conforme os músicos aprendiam a dominá-la, passando de canções folclóricas para composições clássicas até virar uma explosão de gêneros e estilos. As sinfonias e os sons rurais evoluíram e se tornaram álbuns – discos criados como uma obra completa. Uma visão. Uma experiência.
E é por tudo isso, meus amigos, que eu odeio profundamente o Spotify. E o Apple Music. Ou qualquer outro serviço de streaming. O que não quer dizer que eu odeio música digital. Eu amo música em qualquer formato. Não importa de onde venha, seja de uma flauta rudimentar ou de um toca-discos de US$ 10 mil. Mas odeio serviços de streaming com a ira de um bilhão de fãs do Iron Maiden.
MÚSICA COMO ANTIGAMENTE
Meu ódio não tem a ver com a forma com que esses serviços tiram vantagem dos músicos (as gravadoras sempre fizeram isso). Ou porque hospedam e divulgam podcasts com apresentadores ignorantes (as rádios já estão cheias deles). Nem mesmo a qualidade do som é o problema.
Eu odeio streamings porque desvalorizam a música, da mesma forma que a maioria serviços digitais fazem com tudo o que tocam. Spotify, Netflix, Amazon Prime... todo serviço de streaming é incrivelmente conveniente, mas também nojento. Eles são a manifestação máxima do nosso consumismo – uma superabundância de coisas que anestesiam os sentidos e fazem a música parecer descartável.
No ano passado, os vinis superaram as vendas digitais e de CD nos EUA, com 19,4 milhões de unidades vendidas.
Os fluxos intermináveis de músicas vomitadas por um algoritmo não são uma experiência. Eles acabam com a emoção de descobrir um álbum. Destroem a alegria de ouvir um disco pela primeira vez. Impedem a reflexão sobre o que estamos ouvindo.
Grande parte das músicas que eu realmente amo, aprendi a amar com o tempo, com a repetição. Comprava um disco de vinil e ouvia na íntegra, várias vezes, porque não tinha dinheiro para ter uma grande coleção nos anos 80.
Hoje, cada vez mais as pessoas parecem estar retornando à prática de ouvir música como antigamente, talvez por motivos diferentes. De acordo com dados de 2022 divulgados recentemente, as vendas de discos de vinil continuam aumentando.
Isso vem ocorrendo há 17 anos seguidos, mas agora o crescimento é exponencial. No ano passado, os vinis superaram as vendas digitais e de CD nos EUA, com 19,4 milhões de unidades vendidas.
STREAMING X VINIL
Chegamos em um ponto no qual podemos afirmar que o retorno do vinil não é apenas uma moda passageira. O mais surpreendente é que grande parte das vendas se deve a pessoas da geração X como eu, mas uma boa parte pode ser atribuída à geração Z, impulsionada pelas versões em LP de álbuns de artistas como Harry Styles e Taylor Swift. E tudo fica mais interessante quando você descobre que o Spotify está com dificuldade de alcançar estes ouvintes.
A música é a única linguagem verdadeiramente universal na Terra e, provavelmente, fora dela.
Será que os vinis vão superar o streaming? Não vão, tenho certeza. Mas talvez seu ressurgimento venha de um desejo de apreciar a música como uma experiência física, transcendental e honesta, não como uma enxurrada infinita de lixo musical.
Tenho esperança de que esse apreço recente, embora limitado, da geração Z pelos discos de vinil não seja apenas uma tendência que será ,abandonada em alguns anos assim que uma nova surgir. Vamos todos torcer para que seja um interesse real.
Quanto a mim, depois de décadas montando cuidadosamente minhas próprias playlists no iTunes, colecionando álbuns digitais completos e nunca me rendendo ao Spotify ou Apple Music, finalmente voltei aos vinis. Parte disso foi porque eu sentia falta da experiência.
Mas principalmente porque quero que meu filho cresça apreciando música como aquela garota neandertal, e quero que ele as descubra da forma como os artistas a imaginaram – e lentamente, comigo como seu guia, para que cresça nele, em vez de afogá-lo em um mar de cacofonia.
Não consigo pensar em algo tão importante como pai do que guiar meu próprio filho através da história da música e ensiná-lo a apreciar este pilar tão vital da experiência humana.