Design de som, um dos elementos-chave da aclamada série Succession

A trilha sonora inteligente e o design de som da obra da HBO entregaram um nível de sofisticação emocional inigualável na televisão

Créditos: HBO/ Envato Elements

Delia Casadei 5 minutos de leitura

No domingo, 28 de maio, foi ao ar o aguardado episódio final da série "Succession", da HBO. Naquele domingo, fãs do mundo todo assistiram ao clímax de quatro temporadas premiadíssimas, e se despediram da narrativa envolvente, repleta de jogos de poder e humilhação, de humor ácido e de diálogos afiados. 

A série conta a história do magnata da mídia Logan Roy e de seus quatro filhos detestáveis – cada um à sua maneira – que pretendem herdar seu império. O que eu mais gostei foi que o enredo retrata como meros mortais as pessoas desprezíveis que ocupam postos de liderança – impulsivos, patéticos, capazes de sentimentos profundos – sem, com isso, tentar redimi-las.

Mas, como historiadora da música, o que mais vou sentir falta é do uso da música e do som na série. Como muitos críticos notaram, um dos melhores elementos dessa produção é sua trilha sonora, tão complexa e envovente quanto o drama que a acompanha.

Para mim, o design de som inteligente do programa, combinado com a trilha sonora alegremente sombria do compositor Nicholas Britell, entregaram um nível de sofisticação emocional sem precedentes na televisão.

MÚSICA CLÁSSICA CORROMPIDA

A maioria dos dramas políticos contemporâneos é sobre corrupção, e a música é um ótimo canal para revelar o sabor agridoce por trás de algo aparentemente trivial. 

Tradicionalmente, isso é feito adicionando cromatismo – como as teclas pretas do teclado do piano – aos acordes e à melodia, o que produz uma sensação de obscuridade e dissonância. Mas, hoje em dia, qualquer coisa que possa soar estranha pode funcionar. É a habilidade do compositor em adicionar a estranheza na música que faz a diferença.

Eu diria que o universo sonoro da música-tema de Sucession se aproxima da dança de abertura do balé  Romeu e Julieta de Sergei Prokofiev, de 1935, ou do famoso prelúdio de piano de Sergei Rachmaninov, de 1892, em dó sustenido menor – grandes peças românticas que oscilam entre notas de baixo e acordes profundos, como o ressoar de um sino de igreja. Mas Britell acrescentou detalhes que funcionam em uma tensão bizarra com a linguagem musical romântica que adotou.

À sua maneira, característica deste século 21, Britell adorna a música romântica com detalhes que a profanam de modo irreverente, trazendo os espectadores direto para a dinâmica psicológica dos protagonistas, tomados pela fome de poder e por uma autodepreciação que vacila simultaneamente entre a comédia e a tragédia.

Crédito: David Russel/ HBO

OUVINDO O QUE OS PERSONAGENS OUVEM

O design de som fora da curva também ajudou a revelar toda a complexidade psicológica da série. O design de som em Sucession explora maneiras pelas quais todos os sons, de ruídos a diálogos e música, podem ser misturados na trilha sonora.

No episódio piloto, os telespectadores conhecem Kendall Roy, o filho que aparentemente tem mais chances de herdar o controle da empresa de seu pai, mas que está prestes a viver um grande revés nos negócios. Ele está sendo levado pelo motorista para uma reunião no escritório e está empolgado no banco de trás do carro, se mexendo ao som de “An Open Letter to New York”, dos Beastie Boys.

Há aí um detalhe totalmente digno de nota: Kendall é um cara branco, rico e privilegiado, que está se apropriando do hip-hop para expressar seu estado de espírito. 

Os Beastie Boys – e obviamente Britell e os showrunners da série sabem disso – foram  criticados por serem músicos judeus brancos que desfilavam como meninos marginalizados, imitando artistas negros de hip-hop. No início da cena, o som dos Beastie Boys explode na trilha sonora. Segundos depois, a música desaparece nos fones de ouvido de Kendall e os espectadores ouvem apenas a sua voz frágil cantando as letras.

De repente, neste exato instante, suspeitamos que talvez Kendall se odeie até mais do que nós.

Crédito: HBO

A estudiosa de cinema Claudia Gorbman foi a primeira a teorizar sobre esse efeito com o qual os premiados designers de som de Succession, Nicholas Renbeck e Andy Kris, brincaram nesta cena. Gorbman destaca a distinção entre “música diegética” – música tocando ao fundo, digamos, em uma festa, ou sons ambientes, como talheres e pratos – que podem ser ouvidos pelos personagens do filme, e “música não diegética”, que é aquela ouvida apenas pelo público do filme e não pelos personagens.

O equilíbrio entre esses dois tipos de música e sons cria a configuração psicológica para a história: o diegético implica que o mundo dos personagens não é exatamente o do público. O não diegético, por outro lado, implica que os cineastas estão transmitindo as emoções dos personagens para o público, como quando uma trilha começa assim que dois protagonistas românticos se beijam.

A mudança do não diegético para o diegético na entrada de Kendall dá aos espectadores a sensação de que estão espionando sua frágil autoilusão. Ele é instável, contestável, desconhecido - até para si mesmo.

Crédito: HBO

ASSOMBRADO PELA ÁGUA

A música de Britell e o uso de som diegético e não diegético pela série podem ser uma das razões pelas quais, mesmo depois de quatro temporadas, nenhum dos fãs do programa conseguia antecipar com muita confiança quem seria o sucessor do patriarca da família.

A série que começa com Kendall termina com ele também, enquanto ele caminha, atordoado, às margens do rio Hudson. A música-tema não diegética toca em segundo plano uma última vez. Então, por um breve momento - antes de um corte para uma tela preta - o som se torna diegético: os espectadores ouvem, com Kendall, o som da correnteza do rio.

É um momento impactante. Até então, os designers de som do programa deliberadamente evitaram os ruídos dos ambientes, justamente para mostrar como os irmãos Roy são privilegiados demais e ocupados demais para perceber seu entorno.

No momento em que Kendall finalmente escuta o rio Hudson, todos percebem - primeiro com os ouvidos, depois com os próprios olhos - que essa história acabou.

Este artigo foi republicado de The Conversation sob licença Creative Commons. Leia o artigo original.


SOBRE A AUTORA

Delia Casadei é professora assistente de música na Universidade da Califórnia, Berkeley. saiba mais