Detalhes tão imensos de nós todos

A estética minimalista das marcas, da comunicação - da realidade - diz muito sobre o mundo em 2023. Não temos mais tempo para os detalhes?

Crédito: Jorm Sangsorn/ iStock

Guido Sarti 7 minutos de leitura

No filme, o criador da Matrix era O Arquiteto.

Parte importante daquilo que chamamos de realidade é basicamente uma construção dos designers – de todos os tipos, incluindo arquitetos. Eles que recheiam a experiência de caminhar pelos lugares.

O formato de uma rua, a altura de um pé direito, a cor de uma placa neon, o espaço entre os ícones dos apps na tela do nosso celular. Tudo isso é experimentado ao mesmo tempo. Tudo isso é criado e desenhado por designers.

Estamos vivendo uma época em que a comunicação está cada vez mais mais racional e útil do que subjetiva e afetiva. E me parece que isso interfere profundamente na forma como percebemos a realidade.

Não que a estética explique tudo, claro que não dá para julgar um livro só pela capa. Mas, se a estética é de fato a ética exterior, é preciso admitir que a capa faz parte do livro.

Roberto Carlos (Crédito: Teca Lamboglia/ Wikimedia Commons)

DEUS OU O DIABO: QUEM MORA NOS DETALHES?

“Deus está nos detalhes”. A expressão, atribuída ao arquiteto norte-americano Ludwig Mies van der Rohe, tem um significado mais ou menos intuitivo.

Minha interpretação é que é preciso prestar atenção nas minúcias se quisermos entender a tal da big picture. Sem o micro não há macro. A beleza de se constatar que cada galho é como se fosse uma pequena árvore.

Parte importante daquilo que chamamos de realidade é basicamente uma construção dos designers.

Anos depois, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche deixou a frase mais insinuante ao escrever que, na verdade, quem mora nos detalhes é o diabo.

Prefiro a versão do filosófo moderno e trapper Matuê: é no detalhe que o diabo se esconde. O diabo mora em outro lugar, ele vai para os detalhes é para se esconder. De quem o diabo se esconde? E que lugar é esse em que o diabo se sente protegido?

ORNAMENTO É CRIME?

Uma coisa impressionante a respeito de Ludwig Miles van der Rohe é que ele é autor de outra frase célebre, provavelmente ainda mais famosa (pelo menos no circuito publicitário): “menos é mais”.

Por mais que tenha ligado o detalhe a Deus, o estilo arquitetônico de Ludwig é austero, funcional. Ele foi professor da Bauhaus, primeira escola de design do mundo e considerada uma das precursoras do minimalismo. O ser humano é realmente um bicho contraditório.

Um dos pioneiros da Bauhaus, o arquiteto austríaco Adolf Loos escreveu em 1910 um livro chamado “Ornamento e Crime”. Um dos seus argumentos é que uma obra com muitos detalhes e ornamentos logo sairia de moda. E que isso era tão errado a ponto de ser um crime.

Crédito: PNGtree

Se a gente pensar na evolução do capitalismo, esse pensamento nunca foi tão moderno: extrair os detalhes tira a personalidade, mas aumenta a popularidade.

Você pode ter muitas opiniões sobre uma camiseta toda cheia de ornamentos e detalhes. Inclusive a opinião de que não gosta dela. Mas uma camiseta preta provavelmente você vai simplesmente usar, sem grandes julgamentos – nem paixões. Uma camiseta sem Deus nem diabo.

BELEZA IMERSA NA ESCURIDÃO

Inaugurado em 1952 e localizado na beira do rio Capibaribe, o Cine São Luiz é tombado como monumento histórico pelo governo de Pernambuco. É considerado um dos locais de concepção arquitetônica e artística mais sofisticadas do Recife, uma cidade com uma história cultural riquíssima.

O deslumbrante interior do Cinema São Luiz (Crédito: Flickr Direitos Urbanos/ Wikimedia Commons)

Agora compare a estética do cinema São Luiz com as últimas salas de cinema que você já foi. Com todas as salas de cinema que você já foi. Por que caprichar tanto em um local em que 99% do tempo as luzes estão apagadas? O ano de 2023 parece ainda não ter uma resposta para essa pergunta.

EDWARDS MÃOS DE TESOURA   

Sim, os logos estão ficando mais simples. Sabemos que essa minimização extrema tem a ver com a ideia de tornar o logo mais aplicável e mais memorável. Como verdadeiros Edwards Mãos de Tesoura, vamos podando obsessivamente todas as árvores até que só restem os elementos estritamente necessários. E o que era uma selva vira um jardim.

Quanto menos informação, maior a chance de assimilação, de retenção pelo consumidor. Ser memorável em 2023 é mais que uma conquista e tanto: é quase que a conquista e ponto.

O futebol não ficou incólume a esse fenômeno. O escudo de muitos times importantes ao redor do mundo passou por esse processo – no Brasil, o exemplo mais famoso talvez seja o do Atlético Paranaense, que, quase num ato falho, simplificou/ modernizou o logo na mesma época que complicou/ envelheceu o nome, que agora é Athletico.

Muitas vezes, essa busca por reduzir o logo ao seu átomo deixa a comunicação (leia-se: a realidade) tão útil quanto extra sanitária, asséptica, impessoal. Com a mesma personalidade de um corredor de aeroporto.

O DÚBIO EXEMPLO DO JAPÃO

Uma conciliação possível pode estar no Japão, país em que o tradicional e o moderno parecem borbulhar não só na mesma temperatura, mas também na mesma panela.

Fui até lá recentemente, de férias, e visitei um Kominkan. O que à primeira vista parece um coworking com tatames, em pouco tempo se revelou como algo bem mais profundo.

extrair os detalhes tira a personalidade, mas aumenta a popularidade.

O Kominkan é um centro comunitário de aprendizado que qualquer pessoa pode frequentar. Lá, tudo é moderno e antigo ao mesmo tempo. É linda a cena de pessoas usando notebooks e smartphones ultramodernos sentados em tatames. Jovens tomando café em uma sala de chá tradicional enquan- to trabalham nos códigos da próxima plataforma de IA.

Uma coisa não precisa excluir a outra. Uma pode, inclusive, complementar a outra. Mas essa suposta conciliação não é necessariamente pacífica.

Em 2022, o Japão meio que declarou uma guerra contra os disquetes, que à época eram utilizados em quase dois mil procedimentos governamentais. Como diria o outro, “o Japão vive no ano 2000 desde a década de 1980. E desde então eles não foram embora."   

NA VELOCIDADE DO GIF

No final do dia, o que estamos falando é como o subjetivo vem sendo apagado do contemporâneo. E o subjetivo não é um… detalhe. Lembra como filmes, músicas e livros foram importantes para todos nós durante a pandemia?

Quando afirmamos que a cultura é um item de primeira necessidade, estamos dizendo que o subjetivo é essencial.

Hoje sabemos que a saúde mental é tão importante quanto a saúde física, a ponto de uma ser praticamente indissociável da outra. Acredito que parte da explicação para o mal-estar contemporâneo é essa deterioração do subjetivo, que vem sendo fustigado pelo eterno vento efêmero da sociedade de consumo em massa.

Hoje simplesmente não temos tempo para complexidades, nuances, contradições. E aqui não ter tempo não é figura de linguagem. É literalmente isso.

Quanto menos informação, maior a chance de assimilação, de retenção pelo consumidor. Ser memorável em 2023 é mais que uma conquista e tanto: é quase que a conquista e ponto.

Não é a toa que alguém que fala “bandido bom é bandido morto” provavelmente vai ter mais popularidade do que alguém que prioriza uma abordagem mais humanista (ou seja, contraditória), que procura as origens da violência e como devemos tratar aqueles que cometem as violências se realmente quisermos que eles parem de cometer violências.

O primeiro discurso é transmitido e compreendido – concordando-se ou não com ele – em cinco segundos. O outro demandaria uma meia horinha. Qual vai viralizar mais?

Não estou – ou, pelo menos, não queria estar – sendo saudosista. O mundo melhorou em muitos aspectos. Basta dar uma olhada em como eram os direitos de negros, gays, mulheres, indígenas e transsexuais há 150 anos.

Mas é um fato que hoje chega muito mais informação até nós (e aqui me refiro a qualquer conteúdo que chega à nossa retina e ao nosso ouvido em um intervalo de 24 horas, de shorts do YouTube a áudio de WhatsApp, passando por novas farmácias, prédios e Oxxos se reproduzindo na velocidade do gif).

Tem muito mais coisa acontecendo. Na prática, isso significa que temos menos tempo.   

Pode ser que seja cíclico. Pode ser que, daqui a alguns anos, os detalhes voltem a ser a norma. Pode ser que não. O tempo, sempre ele, é que vai dizer.

Nesse meio tempo, é nosso dever prestar atenção nos detalhes que, por mais escassos que sejam, sempre estarão aí para quem souber ver. Isso se a gente não quiser enlouquecer – se é que já não enlouquecemos. 


SOBRE O AUTOR

Guido Sarti é sócio da Galeria Ag e atua como professor coordenador na Miami AdSchool. Foi Head de Novos Negócios e Convergência na Gl... saiba mais