Nômades digitais e o choque com culturas locais

Chegada de "forasteiros" provoca aumento de preços e interfere nos costumes das comunidades onde se instalam

Crédito_ David Espina/ Unsplash

Rachael Woldoff e Robert Litchfield 4 minutos de leitura

Sua comunidade deveria acolher nômades digitais – pessoas que trabalham remotamente – e dar-lhes a liberdade de viajar de país em país?

Nossa pesquisa revela que os trabalhadores não querem mais ficar presos a um escritório. Por sua vez, cidades e países ao redor do mundo estão buscando maneiras de atrair visitantes, como forma de compensar as perdas econômicas causadas pela pandemia. Uma das estratégias envolve ampliar o conceito de turismo para incluir trabalhadores remotos.

Hoje, um número cada vez maior de países oferece os chamados vistos de nômades digitais. Eles permitem estadias mais longas para pessoas que trabalham remotamente, limitando quais atividades podem exercer. No entanto, a reação dos moradores em lugares como Barcelona ou Cidade do México deixou claro as vantagens e desvantagens de receber esses trabalhadores.

ABUSANDO DA HOSPITALIDADE

Moradores sempre reclamaram de turistas. Apesar de contribuírem para a economia – até certo ponto –, às vezes, podem causar desconfortos para a população local. Um exemplo clássico é Veneza, que sofre um grande impacto em sua frágil infraestrutura repleta de canais devido ao número excessivo de turistas.

Muitos dos belos campos de arroz de Bali e suas florestas exuberantes estão virando hotéis e chalés para servir ao turismo.

Durante nossa pesquisa em Bali, os moradores se referiram a nômades digitais e outros turistas como “bules” – palavra do idioma local que pode ser traduzida como “estrangeiros”. Geralmente, termos como esse são usados para expressar descontentamento em relação às multidões de visitantes e ao aumento do tráfego.

Turistas comuns vêm e vão. Suas estadias se limitam a alguns dias ou semanas. Já trabalhadores remotos podem permanecer em uma cidade por semanas, meses ou mais. Eles passam mais tempo usando recursos e serviços tradicionalmente dedicados aos moradores, o que aumenta as chances de que sua presença incomode a população.

Um número excessivo de turistas também pode levantar questões sobre sustentabilidade, já que sobrecarregam o meio ambiente e a infraestrutura. Muitos dos belos campos de arroz de Bali e suas florestas exuberantes, por exemplo, estão virando hotéis e chalés para servir ao turismo.

APROVEITANDO A MOEDA FORTE

Estejam descansando ou trabalhando, turistas privilegiados acabam alterando a economia e a demografia da região.

Seu poder de compra aumenta os custos e prejudica os moradores. Estabelecimentos comerciais tradicionais adotam seus gostos. É comum, por exemplo, que um pequeno restaurante de comida local encerre suas atividades para dar lugar a uma cafeteria chique.

Na Cidade do México, moradores temem ter que se mudar para mais longe porque trabalhadores remotos podem pagar aluguéis mais caros no centro.

Esta dinâmica se agrava com longas estadias. Serviços como o Airbnb facilitam o aluguel de apartamentos por semanas ou meses. Pelo mundo todo, as pessoas estão constatando a rapidez com que isso muda o caráter local e eleva o custo de vida das cidades.

Adotar o estilo de vida de um nômade digital implica em ter que optar por destinos com custo menor. Isso contribui para a gentrificação, pois eles tiram proveito de sua moeda forte para ter um maior poder de compra.

Na Cidade do México, os moradores temem ter que se mudar para bairros mais distantes devido à capacidade dos trabalhadores remotos de pagar aluguéis mais altos. Em Nova Orleans, quase metade das propriedades de Tremé – um dos bairros negros mais antigos dos EUA – foram convertidas em hotéis e hospedagens, expulsando moradores de longa data.

A CULTURA VIRA COMMODITY

O neocolonialismo no turismo refere-se à forma como processos como o overtourism (turismo em excesso, em português) e a gentrificação criam um desequilíbrio de poder que favorece os recém-chegados e corrói os modos de vida locais. Bali, onde estima-se que 80% da economia seja afetada pelo turismo, é um exemplo disso.

O neocolonialismo pode colocar pessoas do mesmo país ou cultura umas contra as outras.

As pessoas vão para lá para participar de rituais espirituais e apreciar a cultura e a natureza. Mas também há um forte ressentimento da população em relação aos praticantes de ioga, hóspedes de resorts e nômades digitais que “tomaram conta” da ilha.

Alguns moradores passaram a ver o turismo dentro e ao redor de templos como a transformação de algo querido – as nuances e os aspectos espirituais de sua cultura – em produto de consumo.

Inevitavelmente, há atritos, que podem ser vistos nos altos índices de crimes leves contra estrangeiros. O neocolonialismo também pode colocar pessoas do mesmo país ou cultura umas contra as outras. Surgem, por exemplo, conflitos entre cooperativas de táxi locais e serviços de transporte particular de outras partes da Indonésia.

Embora os trabalhadores remotos ainda representem uma pequena parcela dos turistas, suas necessidades relacionadas ao trabalho e estadias mais longas faz com que tendam a usar serviços locais e ocupar lugares frequentados por moradores.

Se isso faz com que sejam bem-vindos ou vistos como persona non grata, provavelmente depende de como se comportam e das políticas locais.


SOBRE O AUTOR

Rachael Woldoff é professora de sociologia na West Virginia University. Robert Litchfield é professor associado de negócios na Washing... saiba mais