Por que a arte plana consagrada pela internet é mais interessante do que parece

Crédito: Fast Company Brasil

Elissaveta M. Brandon 7 minutos de leitura

Se você acessou a internet nos últimos cinco anos, provavelmente já deu de cara com eles: personagens humanos em cores vivas, com membros molengos e corpo desproporcional, sorrindo, pulando, cumprimentando ou regando plantas.

O Facebook transformou os princípios estéticos centrais da arte plana em seu estilo interno padrão, conhecido como Alegria (ironicamente, uma emoção não muito associada ao Facebook), em 2017. Os personagens abstratos, em seus tons de pele roxos ou azuis brilhantes, se tornaram imediatamente uma marca registrada da rede, sendo reconhecíveis por qualquer pessoa que já passou algum tempo no Facebook.

Desde então, o estilo Alegria e suas imitações passaram a definir a estética digital do final dos anos 2010, assim como o minimalismo branco aliado à sinalização em neon e a plantas definiram a aparência dos estabelecimentos comerciais. A Slack e a Google lançaram suas derivações, assim como os aplicativos de banco, como quase todo tipo de mídia online e até startups de saúde sexual. De repente, aquele tipo de arte plana baseada em vetor estava em toda parte, especialmente em marcas de tecnologia. Mas sua onipresença nos parecia estranha, e seu otimismo implacável soava um pouco infantil.

(Crédito: Adobe, Google, TikTok) 

Logo, as críticas começaram: o visual tornou-se ironicamente conhecido como “globohomo” (homogeneização global) ou – em uma piada ainda mais maliciosa – “estilo-tecnologia-corporativa”. Esse tipo de ilustração era, ao mesmo tempo, tão reconhecível e tão odiado que se tornou meme, tema de fóruns ativos em subreddits e alvo de inúmeras paródias –inclusive uma imitando a obra “Saturno Devorando Seu Filho”, de Francisco Goya.

Graças ao metaverso de Zuckerberg, ilustradores profissionais têm agora apontado para um retorno gradual à textura e às pinceladas realistas na arte plana, bem como para o esqueumorfismo em 3D. Mesmo assim, é seguro dizer que – quer você ame, quer você deteste – o estilo Alegria é uma tendência com poder de permanência. É hora, portanto, de considerarmos as muitas nuances desse tipo de arte plana.

Alguns estudiosos e ilustradores, independentemente de serem adotantes ou praticantes do estilo, já defendem sua legitimidade histórica na arte. Eles afirmam que aquilo que, à primeira vista, parece um mar estéril de mesmice, pode ter profundidade e variedade inesperadas.

“Acho que a arte plana se tornou um bode expiatório para todos os problemas sistêmicos que enfrentamos em nossa indústria, desde a perda de autoria até as reviravoltas cada vez mais rápidas, passando pelo fato de que o artista tem que manejar o desejo de ser ‘autêntico’ enquanto precisa ganhar dinheiro”, diz o ilustrador e pesquisador Julien Posture, de Montreal, que tem formação em antropologia. “Acho que foi reconfortante colocar a culpa de tudo isso em um estilo, em um certo tipo de cliente, como forma de descartar a realidade muito mais preocupante de que esses problemas estão surgindo em todos os lugares da indústria criativa.”

Depois de anos sendo bode expiatório dos frequentadores da internet com senso estético mais apurado, a arte plana merece uma compreensão mais abrangente, que vá além de sua associação com distopias tecnológicas disfarçadas de utopias tecnológicas: ela é um estilo com seus próprios méritos.

“Muitas das críticas recaem sobre o estilo em si. As pessoas falam sobre como a planicidade é de desumanizante, ou sobre como proporções exageradas são de alguma forma desumanizantes”, diz a ilustradora Michele Rosenthal. “As pessoas falam sobre isso como se esse fosse um estilo inerentemente corporativo.”

Rosenthal se autodenomina apologista da arte plana: ela é ilustradora de vetores desde 2007 e faz parte de um grupo crescente de profissionais criativos que fizeram da defesa desse estilo a sua razão de ser.

“Isso não é apenas a nossa linguagem de design, essas são ideias que estão na arte ocidental há muito tempo”, diz ela.

Henrique Matisse; La Danse (segunda versão), 1909-1910. (Crédito: Wiki Commons)

De fato, a arte plana baseada em formas existe desde a Idade da Pedra e suas pinturas rupestres. Ela ganhou destaque novamente com o Modernismo, quando artistas ocidentais olharam para as tradições artísticas não europeias para evitar a arte realista e figurativa. Considere as proporções exageradas vistas em “Les Demoiselles d’Avignon”, de Picasso, ou as superfícies planas de “The Dance”, de Matisse.

Outro ilustre precedente na arte plana é o trabalho do artista de pôsteres Art Déco A.M. Cassandre, cujas ilustrações planas aparentemente são simples, mas que, na verdade, são sustentadas por cálculos matemáticos. Depois, veio a estética de meados do século. A artista da Disney Mary Blair, mais notável pela arte conceitual de cenas-chave de “Alice no País das Maravilhas” e de “A Bela Adormecida”, criou ilustrações coloridas de alto contraste justapostas a cenários surrealistas, além de personagens de proporções estranhas. E enquanto as décadas de 1970 e 1980 deram lugar a estilos de ilustração mais pictóricos, na década de 1990, quando os computadores pessoais vieram equipados com programas gráficos com kits de ferramentas limitados, as pessoas começaram a experimentar a ilustração digital.

“Uma coisa que o computador podia fazer bem era arte plana. Ou, mais especificamente, arte vetorial”, diz Rosenthal.

Embora o Facebook tenha sido o primeiro a popularizar o uso da arte plana, ele não é o dono do estilo – e todos os que seguiram essa tendência significaram um boom de trabalho para certos designers.

“Por volta de 2012, comecei a receber clientes da esfera da tecnologia que queriam ilustrações para seus aplicativos”, relembra Rosenthal. “Antes disso, honestamente, não encontrava muitos compradores para o meu estilo de ilustração. Comecei a me interessar por todas essas startups de tecnologia que queriam tornar seus aplicativos mais atraentes e divertidos.”

A diversão anda de mãos dadas com a nostalgia, outro componente da arte vetorial, baseada em formas.

“Muitos ilustradores que trabalham nesse estilo cresceram rodeados por livros infantis feitos nesse estilo e assistiram às animações antigas, também nesse estilo”, diz Rosenthal. “E, por despertar essa sensação de familiaridade, ele funciona bem. As empresas de tecnologia querem que as coisas pareçam familiares. Eles não querem que as coisas pareçam que este é um novo mundo tecnológico e assustador.”

E, embora os estilos do Google e do Facebook possam, de fato, parecer homogêneos, há outras empresas que estão levando adiante os modos como as ilustrações baseadas em formas são utilizadas. Nas ilustrações do aplicativo de encontros Hinge, por exemplo, os personagens seguem harmoniosamente uma linha de ação curvilínea, enquanto o estúdio de animação educacional Kurzgesagt combina arte plana com efeitos de luz e sombra, reproduzindo de forma convincente, digamos, o brilho do magma ou de objetos celestes. A The New Yorker é adepta de carteirinha da arte plana, com ilustrações de Malika Favre e Olimpia Zagnoli em suas capas.

Rosenthal ressalta que, no campo da ilustração, o estilo individual supera tudo o que podemos perceber como meras tendências. “Nós, ilustradores, meio que temos o nosso próprio estilo, no qual gostamos de trabalhar”, diz ela. “Então, se alguém está nos contratando, eles estão nos contratando para o estilo que já estamos fazendo – eles não estão nos dizendo para trabalhar no estilo de outra pessoa. É um erro as pessoas pensarem que muitas ilustrações têm um estilo semelhante somente porque os clientes estão solicitando isso.”

Também é importante observar que, para ilustradores profissionais, a arte plana pode ser um meio ideal, especialmente em um contexto de orçamentos estagnados ou reduzidos, juntamente aos prazos apertados.

“Os vetores têm a vantagem de serem eficientes e escaláveis, o que realmente ajuda quando a imagem pode acabar depois em uma mídia diferente”, diz Posture.

Rosenthal comenta que algumas pessoas culparam esse estilo por baixar os preços das ilustrações, mas ela argumenta que isso não é verdade. Segundo ela, os preços das ilustrações vêm caindo há décadas. Criar arte se tornou algo um pouco mais rápido de fazer, e que não requer mais uma sala cheia de materiais de arte. Um computador e um software caro podem facilitar o trabalho, o que se reflete nos preços mais baixos das ilustrações. Por outro lado, “isso mantém a ilustração viável como carreira”, diz ela.


SOBRE A AUTORA

Elissaveta Brandon é colaboradora da Fast Company. saiba mais