Por que personagens que caem em domínio público viram histórias de horror?
A ideia de subverter um personagem icônico tem se mostrado irresistível
Mickey Mouse, um dos símbolos comerciais mais conhecidos e mais protegidos de todos os tempos, vem exibindo recentemente uma nova faceta: a de assassino. O motivo dessa mudança radical é o fim dos direitos autorais do "Steamboat Willie", um curta de animação mudo que trazia uma versão mais antiga do Mickey.
Isso colocou a primeira versão do alegre camundongo (junto com Minnie) em domínio público, livre para ser copiada, parodiada e compartilhada. Milhares de outras obras entraram em domínio público em 1º de janeiro, mas o personagem principal da Disney foi, obviamente, aquele que mais chamou a atenção. Que elementos os novos criadores podem agregar a essa figura histórica?
A primeira resposta que vem à mente é... sangue! Um trailer de "Mickey's Mouse Trap", descrito como um "mata-mata de baixo orçamento" com o Mickey como o vilão assassino, foi logo lançado.
Outro projeto de comédia de terror, ainda sem título, também foi anunciado: "Steamboat Willie trouxe alegria para gerações", anunciou o diretor Steven LaMorte, "mas por trás desse exterior alegre há um grande potencial para o mais puro e ensandecido terror". Também há jogos em desenvolvimento, incluindo um violento jogo de tiro chamado "Mouse".
Uma explicação óbvia que justifica o Mickey ser transformado em monstro é a percepção da demanda do mercado. No ano passado, "Winnie the Pooh: Blood and Honey", um filme de terror sobre o ursinho desatento, que custou cerca de US$ 25 mil, aproveitou uma onda de atenção on-line e da mídia para arrecadar mais de US$ 5 milhões – a Disney, aliás, controlava os direitos autorais da história de Pooh antes de ela entrar em domínio público.
Os mesmos produtores estão planejando uma sequência e fazendo um filme de terror chamado "Bambi: The Reckoning", que supostamente reimagina o personagem titular como um "cervo assassino mutante".
Um precedente anterior, "Pride and Prejudice and Zombies" (Orgulho e Preconceito e Zumbis), de 2009, transformou o clássico de Jane Austen, de 1813, em uma praga de mortos-vivos, tornando-se um best-seller do "New York Times" e gerando um filme (menos bem-sucedido) em 2016.
A demanda por esse tipo de produto pode ser impulsionada simplesmente pela "atração do contraintuitivo", explica Susan Scafidi, diretora acadêmica do Fashion Law Institute da Universidade de Fordham.
"O que o ursinho Pooh ou o Mickey jamais fariam, pelo menos enquanto estivessem sob a tutela de uma grande marca?", questiona. Em outras palavras, queremos ver um Mickey assassino, em parte porque a Disney jamais permitiria que isso acontecesse.
MARCA REGISTRADA
De certa forma, esse desejo de subverter o icônico é tão antigo quanto a cultura pop. Alunos do ensino médio de todas as épocas já rabiscaram suas interpretações de personagens famosos envolvidos em atos duvidosos.
O mesmo poder nostálgico que dá a figuras como Mickey Mouse, Ursinho Pooh ou Snoopy uma ressonância que transcende gerações também as torna divertidas de subverter – e de disseminar.
Jennifer Jenkins, diretora do Centro Duke para Estudos do Domínio Público, explica que apenas a versão Steamboat Willie do personagem (em preto e branco e sem a famosa voz) perdeu seus direitos autorais. As várias encarnações posteriores que resultaram no Mickey atual ainda estão protegidas.
a Disney teve anos para se preparar para esse momento e agora deve aprimorar suas estratégias para proteger suas propriedades.
Além disso, o design do Mickey moderno (junto com outros personagens da Disney) é também uma marca registrada, e esse tipo de proteção legal não tem limite de tempo.
"A empresa criou um conjunto de marcas registradas digno da Bela Adormecida para proteger sua propriedade sobre o Mickey, desde seu nome até a imagem atual do personagem e a silhueta familiar", observa Scafidi.
"Qualquer pessoa que reutilize o material original de Steamboat Willie precisará evitar a confusão do consumidor quanto ao fato de a Disney ainda estar por trás da nova versão do velho rato."
"CONFUSÃO DO CONSUMIDOR"
A abordagem contraintuitiva da troca de contexto para os personagens pode, teoricamente, ter um "potencial benefício de propriedade intelectual", diz Scafidi. As criações de terror são tão distantes do DNA da Disney que "podem ter menos probabilidade de desencadear reivindicações de violação de marca registrada".
Mas esse benefício provavelmente seria limitado. A Disney, ao comentar sobre o novo capítulo de Steamboat Willie, declarou: "Trabalharemos para nos proteger contra a confusão do consumidor causada por usos não autorizados do Mickey e de nossos outros personagens icônicos".
O diretor do filme “Blood and Honey” admitiu que adotou uma estratégia mais minimalista em relação aos vilões Pooh e Piglet (que, na verdade, eram apenas dois homens com máscaras) para evitar "problemas legais".
A produção de produtos comerciais implicaria em outras complexidades para evitar acusações de "confusão do consumidor" e violação de marca registrada. Tecnicamente, pode ser possível vender versões das imagens do Steamboat Willie.
Mas, como aponta Scafidi, as marcas de moda que fizeram colaborações com a imagem do camundongo no passado ou que esperam fazê-lo no futuro podem preferir evitar prejudicar um relacionamento lucrativo.
Afinal de contas, a Disney teve anos para se preparar para esse momento e agora deve aprimorar suas estratégias à medida que se prepara para que mais obras protegidas por direitos autorais caiam em domínio público a cada ano. Até o momento, os filmes cult de terror parecem estar a salvo.
Mas, independentemente do que aconteça nesses filmes, é improvável que os personagens da Disney sejam vítimas na vida real. "No final das contas, a Disney perdeu apenas os direitos exclusivos das imagens do Steamboat Willie", diz Scaifidi, "mas isso não tem um impacto tão grande”.