Reconhecimento como design do óbvio

Crédito: Fast Company Brasil

Claudia Penteado 5 minutos de leitura

Quando se fala da questão racial no Brasil, naturalmente vem o debate sobre quem é racista. Já faz um tempo que a sociedade brasileira em sua maioria “esclarecida” concorda em relação à existência do racismo, porém o que se observa é que ninguém se considera racista. Ou seja, o Brasil é um país onde todos concordam que existe o racismo, mas ao mesmo tempo ninguém se considera racista. É uma conta que não fecha. 

A grande questão do racismo brasileiro é que o que se considera racismo talvez seja uma das máximas expressões do racismo e grosseria – que é a ofensa racial. Daí, o sujeito que nunca chamou ninguém de macaco, macaca, preto fedido e afins, não se considera racista. 

O Brasil é um país onde todos concordam que existe o racismo, mas ao mesmo tempo ninguém se considera racista. É uma conta que não fecha.

Talvez, nosso problema gire em torno da definição do que de fato é racismo, e como as pessoas não conseguem e não sabem definir o que ele é, saem pela tangente utilizando retóricas pobres e histórias mal contadas. Numa twittada eu poderia definir racismo como: um sistema de reprodução socio-estrutural que tende a, no caso brasileiro e norte americano, estabelecer uma superioridade da pessoa branca sobre a pessoa negra, tendo seu principal marcador a cor da pele. Amados, tem gente que acredita nisso como fator biológico, ou seja, se a pessoa nasce branca já lhe é conferido uma carteira de privilégios – e se nasce preto, uma cesta de punições. 

No texto anterior, quando falava sobre culpa, eu fiz questão de trazer as várias possibilidades de uma pessoa não negra identificar o quanto ela é privilegiada. Porém, se isso não for o suficiente, basta fazer o teste do pescoço. O teste do pescoço é muito simples: basta você colocar seu pescoço nas clínicas médicas e identificar quantos médicos e médicas negres encontra, ou basta ir à sua agência bancária, onde você tem uma conta Personalitè, Van Gogh, Select ou qualquer outra e contar quantos gerentes negres existem lá – ou mesmo clientes. Além disso, o teste do pescoço pode ser aplicado à moda track down: basta com seus pescoção você contabilizar quantos garçons negros te atendem, quantas pessoas negres nos serviços de limpeza você encontra na sua empresa, quantos seguranças, motoristas, manicures, babas e por ai vai. O resultado mostrará algo que só pode ser construído pela lógica estrutural do racismo, e num trava língua de meio de texto eu diria que: estruturas estruturantes, estruturam as estruturas, entendeu? 

Corta para segunda parte do texto.

Quando resolvi trazer a proposta dos cincos passos para o antirracismo, tendo como um deles o reconhecimento, minha proposta sempre foi ajudar as pessoas a saírem de um certo comodismo social e se permitirem criticar e repensar suas zonas de conforto. Se é verdade que o sentimento de culpa pode produzir uma certa “culpa cristã”, é o reconhecimento que nos leva a uma atitude madura, consciente e assertiva em relação às dinâmicas sociais e raciais que nos cercam todos os dias.  Reconhecer implica em afetar, afetar nos convida a ter afeto e afeto por sua vez nos leva a uma atitude de empatia. Empatia, que é definida por muitos como se pôr no lugar do outro, só que nesse caso é impossível, pois jamais uma pessoa branca poderá sentir o que é estar em trajes negros, assim como nenhuma pessoa negra jamais poderá experimentar o privilégio que é ser branco. 

Reconhecer implica ter interesse de se aprofundar. O raso já não cabe mais. Poucas palavras, meias palavras já soam como desrespeito e quem quiser de fato se tornar antirracista terá que ser muito mais interessado que interessante. Há uma multiplicidades de possibilidades para desconstrução: existem livros, artigos, filmes, seriados a respeito das questões raciais e de como elas se desenvolvem ao longo da história, não há possibilidade de desculpas para quem nega a estrutura do racismo.  

E se for preciso, tem gente que até desenhou para ficar mais fácil. O reconhecimento pode trazer desconforto, te deixar como se estivesse nu, frente a uma realidade que te atravessa todos os dias. O incômodo de ver o óbvio após anos de cegueira é assustador.

Lembro-me de uma conversa que tive com o ex-Ministro da Educação, José Henrique Paim, nos corredores da Fundação Getulio Vargas. Nesta conversa falávamos sobre a experiência dele como ministro e o papel da educação na superação do racismo. Na ocasião, ele dizia que durante o tempo que esteve à frente da pasta, fez muitos esforços no sentido de criar um ambiente onde pessoas pretas pudessem se desenvolver educacionalmente na expectativa de que o acesso a um ensino básico de qualidade pudesse corrigir algumas distorções simbólicas criadas pela estrutura do racismo, além de fortalecer o sistema universitário com políticas de ações afirmativas como as cotas raciais, bem como os auxílios permanência. Muitos eram os desafios que as pessoas pretas encaravam durante sua jornada educativa e garantir um bom aproveitamento talvez pudesse minimizar distâncias econômicas com uma inserção positiva no mercado de trabalho. A questão é que, mesmo se esforçando muito na iniciativa pública, o professor e ex-ministro salientava que não era possível que somente com esforços do setor público dessem conta de equiparar o desastre provocado pela escravidão e a abolição sem direitos. Era máxima vênia que a iniciativa privada, junto com a sociedade civil organizada assumissem a reparação histórica como um projeto de nação. 

O que o professor Paim estava sinalizando era que: “quem criou e se beneficia do problema, que resolva” e nesse caso, o problema seria a chaga gerada pela escravidão e seus desdobramentos. Quem criou o problema foi primeiramente o governo de Portugal e, na sequência, o estado brasileiro. Mas, como já vimos, pessoas e organizações se beneficiam disso, logo elas precisam fazer parte da solução. 

O convite é bem simples e singelo, no espírito da generosidade, que diz respeito a fazer aquilo que tem de ser feito simplesmente porque é o certo a fazer. Que tenhamos uma semana de reflexão, reflexão essa que nos leve ao último passo, a saber: a reparação.


SOBRE A AUTORA

Claudia Penteado é editora chefe da Fast Company Brasil. saiba mais