8 ideias de lideranças negras para um 2023 mais inclusivo


LG Lo-Buono 14 minutos de leitura

Para celebrar o mês da consciência negra, em novembro último, lançamos o projeto “Cinco Por Cento”. Um podcast em formato de 10 entrevistas com atuais lideranças negras do mundo corporativo brasileiro.

Dados do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) junto ao Instituto Ethos, e também da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/IBGE) de 2021 apontam que mulheres e homens negros em cargos de diretoria ou gerência, no Brasil, representam apenas 5% do quadro executivo.

Mas, apesar desta estatística alarmante sobre a manifestação do racismo institucional no país, nós existimos. E nossas ideias precisam reverberar para futuras e futuros de nós.

Este artigo é um presente para você. Celebro o fim deste ano com uma síntese das conversas do projeto Cinco Por Cento, compartilhando as oito ideias de lideranças negras para um 2023 mais inclusivo. Aproveite as reflexões!

*Agradeço, novamente e sempre, às lideranças que participaram do projeto e aparecem neste artigo, em ordem alfabética (com os links para as conversas completas):

Carlos Domingues - gerente de EVP, cultura e diversidade da PepsiCo

Danilo Lima - head da Trace Academia

Felipe Oliveira - diretor de relacionamentos da MIT Review Brasil/ HSM Management

Gustavo Venâncio - diretor executivo do Instituto C&A

Helena Bertho - diretora global de D&I do Nubank

Inaiara Florêncio - diretora de marketing de conteúdo do Mercado Bitcoin

Indianara Dias - head de ESG do Zé Delivery/ Ambev

Ismael dos Anjos - gerente de comunicação global da Natura

Mafoane Odara - líder de RH da Meta para a América Latina

Tamara Braga - head de D&I da Gupy

1 . Ativismo e mundo corporativo podem (e devem), sim, dar match

Mafoane Odara – A melhor definição de ativista, aprendi com a Jurema Werneck, que diz: “o ativista é a pessoa que coloca a esperança em movimento”. Estamos vivendo em um mundo muito complexo e não dá para simplificar as discussões dizendo que somos apenas “contra ou a favor” de um determinado tema. O ativismo nada mais é do que ampliar as possibilidades de resolução de problemas.

É inegável que saímos de um mundo corporativo que só se preocupava com a questão financeira e vivemos uma cultura organizacional que prima pelo propósito, equilíbrio entre vida profissional e pessoal, saúde mental no centro da estratégia…

Ser “ativista” nas organizações passa por entender que existem distintas manifestações, que podem ser mais ou menos silenciosas e estratégicas, e compreender que é muito mais sobre mudar a forma de olhar para as certezas e questionar o modelo de empresa e sociedade que queremos.

2 . Inclusão trará desconforto, mas é o desconforto que transforma

Tamara Braga – Tenho certeza de que só estou aqui hoje porque meu currículo se parece com o de uma pessoa branca. Quando as empresas vão contratar, a cultura, os requisitos, tudo é pautado na vida de uma pessoa branca e privilegiada.

Olhar os processos e entender como adaptar cada um deles para os grupos sociais diversos é o que faço hoje. Revisitar requisitos, competências, “réguas”. A história e os desafios que superei na vida dizem muito mais sobre minhas competências do que, eventualmente, algo sobre o qual eu tenha apenas um diploma no currículo.

Carlos Domingues – Não é nem mais sobre retenção, porque ninguém é obrigado a estar nas empresas. É sobre engajamento: as pessoas têm que querer estar aqui. É um desafio grande. O segundo item que mais aparece em nossas pesquisas de engajamento no ambiente de trabalho nos últimos cinco anos é sobre ter um ambiente inclusivo.

Como, no momento em que a pessoa chega aqui, eu proporciono conversas, momentos, rituais para que essa pessoa seja ela mesma? Isso tem a ver com as lideranças, que precisam entender sobre vulnerabilidade, sobre não ter todas as respostas, ser abertas, aprender e escutar quem pensa diferente delas.

Mafoane Odara – Com o aumento da representatividade [nas empresas], independente de qual seja ela, aumenta a tensão. Quando aumenta a tensão, os conflitos aparecem. Precisamos reconhecer que as tensões fazem parte do crescimento. É um desafio, mas é fundamental para a sustentabilidade das organizações.

Quais são as políticas que a empresa tem para realmente dar suporte a isso? Isso é só de RH, é da cultura, está claro para todo mundo? As pessoas precisam estar preparadas para lidar com o desconforto, porque é o desconforto que transforma.

3 . Não se constrói comunicação sem vivências

Inaiara Florencio – Existe uma diferença entre significado e significância. A comunicação tem o poder de construir significância, que é a ideia de “ter sucesso com o significado”. Ela pode ser um guia e até um combustível no processo de transformação social de forma mais ampla, para construir impacto cultural com mais propósito.

Isso é a significância, que é a unificação de tudo: processos de comunicação, quem são de fato as pessoas responsáveis por aquilo, para quem… Assim, vemos muito menos fórmulas prontas de sucesso e mais profissionais trazendo personalidade e vivências próprias para a comunicação, novas agências surgindo, movimentos de grupos sociais diversos construindo seus próprios negócios e narrativas.

Helena Bertho – Não é sobre o que eu tenho para dizer, é sobre o que as pessoas querem ouvir. Sempre pensei que precisava trabalhar uma comunicação que incluísse e fizesse sentido para todas as pessoas. Mas, em algum momento, entendi que não existia mais como comunicar para as pessoas, era comunicar com elas.”

4 . O papel social das empresas é irreversível

Danilo Lima – Minha trajetória profissional se relaciona com o momento que a gente vive. Negro da periferia, primeira pessoa a acessar ensino superior da minha família, se qualificar, fiz pós-graduação, experiência fora do Brasil... Não digo isso com glamour, não. É um indício de que falta muito ainda.

Muitos colegas que estão em lugares estratégicos hoje também passaram por mecanismos de ação afirmativa, tanto nas empresas quanto nas instituições públicas. É necessário que se reconheçam as questões de gênero, de raça, deficiência, representatividade. Não tem como pensar o Brasil sem passar por esses temas.

Isso tem que se traduzir, nas instituições, em soluções práticas. Seja na política, na economia, na mídia, nas empresas, temos que fazer a mesma coisa: combater desigualdades, rever processos e construir pontes entre universos muito diversos, mas que têm muito a aprender um com o outro. Criar soluções que vão ao encontro de uma necessidade de país.

Indianara Dias – Buscamos respostas que não são óbvias. Mas os caminhos são construídos através dessa intenção genuína, de mudar a sociedade, compartilhar oportunidade, crescer juntos. Quando falamos de ESG, estamos falando de impacto. E falar de representatividade racial, dentro da frente social de ESG, tem tudo a ver para a realidade específica do país em que vivemos.

Mafoane Odara – Vou contar um caso. A USP criou uma nova Reitoria de Pertencimento e Inclusão este ano. Pela primeira vez, em 2022, o número de estudantes de escolas públicas passou o de escolas particulares. A USP é a universidade mais conservadora deste país, isso não é qualquer coisa.

Quando vamos para o mundo corporativo para traduzir isso, por exemplo, o marketing é o lugar mais conservador para fazer transformação, porque é onde se reproduz todos os estereótipos e preconceitos que a sociedade tem. Lugares mais conservadores demoram mais para mudar essa chave.

Precisamos entender que está tudo bem as tensões acontecerem. Porque o que dificulta tudo é o medo do diferente. “O que vai acontecer se trouxer uma pessoa da periferia, alguém totalmente diferente de mim?” Não é simples, mas ter conversas difíceis é o único caminho para fazer a virada de chave que precisamos. Vamos ter, sim, que ser corajosos e intencionais. Vai doer, mas crescer dói.

5 . Racializar-se é para todes, e é para agora

Ismael dos Anjos – Racializar-se é um passo importante para todos e todas. Pessoas brancas precisam entender que têm que se racializar. Elas são o grupo identitário mais bem-sucedido do Brasil, embora essa alcunha seja empurrada para grupos minorizados.

A noção de racialização é muito importante para quebrar o mito da democracia racial e para se reaver com nosso passado, para sonhar um futuro, um Brasil, porque o que tivemos até agora não foi necessariamente um sonho coletivo...

Mas é também importante para a gente se ver com nossas trajetórias. Entendo que a racialização tem ainda um processo de acolhimento quando conseguimos nos afrocentrar [no caso de pessoas negras], ficar em paz com os passos que nos trouxeram até aqui, o que é muito importante. Porque isso é algo central, que organiza as experiências da vida, de ser filho, de ser pai, de saber em quem votar, quais escolhas fazer.

6 . É fundamental empatizar, reconhecer e refletir sobre as identidades que se cruzam. Sobre masculinidades, inclusive

Gustavo Venâncio – Quando entendi que minha carreira estava em um momento anterior à dos meus colegas que estudaram comigo que não eram, como eu, homossexuais e negros, foi quando me veio o alerta. Minha homossexualidade não atrapalhou tanto a minha carreira quanto minha negritude – que é óbvia, porque sou uma pessoa de pele retinta.

Não podia esconder minha negritude, mas pude esconder minha sexualidade. Claro que isso me atrasou, porque esconder dá trabalho pra caramba, mas tive essa opção. É o que muitos fazem no dia a dia.

Ismael dos Anjos – Não existe, na sociedade em que vivemos, uma questão séria ou leve que não seja atravessada pelas masculinidades de maneira preponderante. Machismo é uma ideologia que serve de pilar para a construção ocidental do que é uma sociedade, uma família, uma comunidade.

As empresas não são diferentes disso. Ainda há muita resistência, principalmente porque quem está no poder acha que chegou lá "apesar de” e não "por conta de”. Se quem está no poder não estiver minimamente disposto a compreender outras visões de mundo, vai ser difícil.

Para mim, mergulhar nas minhas masculinidades me ajudou a ser o líder que sou, mas primeiro porque me ajudou a ser a pessoa que sou. Quando a gente se olha no espelho, vai sempre ter a opção de fazer o que outras pessoas já fizeram ou fazer diferente, como acontece com a paternidade.

Vai ser muito difícil chegar em um lugar equilibrado para raça se só pessoas negras, indígenas e amarelas estiverem dizendo que “não tá legal”. As pessoas brancas precisam entender que não tá legal, que não tá legal para elas também, que estão criando filhos para uma visão de mundo enviesada.

7 . Lideranças negras também seguirão enfrentando seus próprios processos internos

Felipe Oliveira – É nítido que nas salas de reunião, no board de diretores, a diversidade racial muitas vezes é baseada no tokenismo. Às vezes tem apenas umapessoa negra naquele meio, que acaba participando de todas as comunicações internas, iniciativas sobre diversidade, entrevistas…

Eu, como homem retinto e de cabelo afro, me destaco naturalmente em um ambiente que é majoritariamente branco. Mas, ao me posicionar, principalmente em gestão de pessoas, sempre deixo claro que essa pauta não é só minha. Eu, sozinho, não conseguirei resolver a baixa representatividade nas empresas.

É importante que as pessoas [brancas] olhem para fora do espelho. Não necessariamente um homem branco, grisalho, de colete, é o único que tem a possibilidade de alcançar um cargo de gestão, não é o único estereótipo que representa o sucesso, o executivo de destaque.

Ismael dos Anjos – A solidão é uma companhia perene. Porque estamos no processo ainda, né? É muito comum que eu esteja numa reunião e não tenha pares homens e mulheres negras. Ao mesmo tempo, lidero pessoas negras na minha equipe que dizem se sentir aquilombadas por serem geridas por mim.

Então é estranho, porque ao mesmo tempo que entendo que estamos caminhando, ser uma das pessoas em posição “mais à frente” te deixa em um lugar de solidão muito similar ao que eu já sentia antes. Porque as pessoas [negras] também não estão lá.

Indianara Dias – É uma jornada muito solitária, ainda. Exigiu um autoconhecimento muito grande. Felizmente, pude contar, nos últimos anos, com terapia, rede de mentores… Isso requer um trabalho extra ao longo do dia, pois não tenho referência de histórias que me contemplam 100%. Eu tenho que construir.

Converso com inúmeras pessoas, mulheres e homens, e vou coletando um pouquinho de cada um para criar uma “persona” que me acolha. O que faço hoje, e sempre vou fazer, é trazer pessoas para a roda.

Como eu puder ajudar, em programas de seleção, estarei lá. Exigindo mais representatividade, mais acesso. Se sei de um cargo vago, sempre sugiro alguém que conheço. Estou o tempo inteiro atenta.

8 . Você, profissional negre: você não é uma impostora

Helena Bertho – A minha bisavó nasceu em 1901. Esse país aboliu oficialmente a escravidão em 1888. Estou falando de três gerações, dela até mim, que separam a senzala de eu estar [trabalhando] hoje na maior instituição de serviços financeiros digitais da América Latina. Eu não posso ser uma impostora. Se fosse, não estaria aqui hoje.

Obviamente, isso não é sobre mim. Mas, falando coletivamente sobre todas as pessoas negras que estão no mercado de trabalho: estamos lá porque teve muito esforço, muito brilhantismo, muita genialidade, muita habilidade em navegar em um sistema que não foi criado para pessoas como nós.

Gustavo Venâncio – Pessoas negras em posição de liderança estão “cortando o mato alto” dentro do mundo corporativo. Sempre era eu que me colocava na expectativa dos outros sobre mim. De não errar nunca, de ser infalível. Tantos pratos assim às vezes caem, e vão cair mesmo. É importante aprender a colá-los para continuar a girá-los depois.

Indianara Dias – Uma vez que tenho um ambiente parecido comigo, a “síndrome do impostor” não tem como se desenvolver. Quando olho para o exterior e todo mundo que julgo bom não se parece comigo, esse olhar depreciativo sobre mim se torna recorrente. Você se torna sua maior vilã. Hoje consigo mapear minhas sombras, não cair nessas armadilhas e me cercar de pessoas que possam me fortalecer.

Bônus: conselhos das atuais lideranças negras para as futuras

Helena Bertho – Acreditem, mesmo. Já temos um lugar de vitória muito grande de estarmos nos espaços. É importante resgatar nossa coletividade, e não vitórias individuais. Quando nos percebemos como fruto de vitórias coletivas passadas, entendemos que nossa vitória individual é contínua.

Isso tira um pouco do peso, do desânimo. Percebemos que somos parte dessa construção e que a gente vai plantar árvores onde não necessariamente sentaremos à sombra. Mas, hoje, estamos nos sentando à sombra de árvores que não plantamos. É meio filosófico, mas é onde encontro a minha insistência.

Inaiara Florencio – Autoconhecimento. A gente ouve muito sobre repertório técnico, mas não sobre repertório emocional, que está muito atrelado às trajetórias individuais, que é algo extremamente único. Para mim, essa é uma das maiores potências que temos.

Demorei para entender que minha visão de mundo e vivência completamente diferente eram a maior riqueza de inovação e criatividade que eu tinha. Entender que sua história é o que você tem de mais valioso é o mais importante. Autoconhecimento é isso.”

Felipe Oliveira – Construir uma rede de relacionamentos forte, positiva. Também é uma questão de posicionamento, sim. Muitas empresas vão tentar minimizar o que falamos, sobre assuntos raciais, por exemplo. Sejam firmes. A sociedade hoje se construiu por bolhas dentro de bolhas e é necessário que elas se choquem de vez em quando.

Tamara Braga – Foi muito importante, para mim, me entender como pessoa e meus impactos. Chegar aonde cheguei, mesmo sendo tudo o que muitas vezes o mundo corporativo estranha, faz com que outras pessoas se inspirem. Entendi que, além de qualquer empresa, eu sou eu. Uma empresa pode desistir de mim quando ela quiser, mas vou ser a Tamara onde quer que eu esteja.

Carlos Domingues – Acreditar nos seus talentos. Muitas amigas e amigos me elogiam por eu ter uma “boa comunicação”. Sempre nego isso, me justifico. Um dia, alguém me cutucou dizendo “ei, você é bom nisso sim, não tem que ficar se justificando”.

Tenho entendido cada vez mais isso, e é algo que ninguém me falou ao longo da minha carreira. Talvez até o contrário. Mas olhar para os meus talentos, reconhecê-los e usá-los no dia a dia tem feito uma diferença enorme na minha vida.

Me sinto mais encorajado a me valorizar mais. Tento levar isso quando estou com outras pessoas que vieram do mesmo lugar que eu, que provavelmente tenham dores e vivências parecidas com as minhas. A autoestima é muito, muito importante.


SOBRE O AUTOR

‘LG’ Lo-Buono é especialista em DE&I para organizações, fundador e diretor da consultoria Pulsos. Trabalha com marcas como Meta, J... saiba mais