A arte de aprender a aprender em tempos de IA
Como navegar mudanças constantes quando metade dos alunos lê como máquinas

Tive o privilégio de me formar em um curso que valorizava o ato de aprender como uma habilidade do futuro. O nome da matéria que fiz na graduação era “Aprendendo a Aprender”.
Ali, discutimos diferentes maneiras para incorporar novos conhecimentos, falamos sobre teorias de aprendizado e sobre como estar desconfortável com o desconhecido é um dos primeiros passos na direção de desenvolver novas habilidades. Chegamos, inclusive, a praticar o ócio criativo, algo que só fui entender a importância recentemente como empreendedora.
Opa, deixa eu me apresentar. Me chamo Letícia Pozza, sou brasileira, formada em negócios pela Unisinos e expatriada na Espanha, onde fiz meu mestrado em dados e design. Na Odd Studio, lidero um time no Brasil e na Europa em projetos globais que apoiam organizações a transformar seus dados em ferramentas, interfaces, histórias e usá-los de forma eficiente para tomar melhores decisões.
Nesta coluna, vou misturar experiências pessoais com tópicos relacionados a dados, design e tecnologia. Sou nerd e curiosa por natureza, e espero contribuir com tópicos para instigar, informar e, quem sabe, refletir.
Com toda sinceridade, a Letícia de 19 anos só se preocupava em se provar capaz e se encontrar como profissional; achava tudo que não fosse “hard skills” – ou conhecimentos considerados técnicos – uma grande balela.
Não posso negar que ser letrada em dados e falar vários idiomas me ajuda muito até hoje. Mas não é o que me fez ter uma empresa em crescimento e expandindo para a Europa. Também não é sobre me achar mais inteligente: eu, de fato, aprendi a aprender.
Ser empreendedora é estar em constante estado de aprendizado. Buscar fazer as perguntas certas, entender a dor do cliente e buscar formas criativas de solucioná-la faz com que eu consiga trabalhar em diversos setores e organizações, desempenhando papéis que vão desde montar times e processos de dados a dar suporte na digitalização de programas de apoio à primeira infância, como o Criança Feliz.
Combinar esses conhecimentos técnicos com tudo que desenvolvi de “soft” – ou habilidades interpessoais e criativas – foi crucial para aprender a navegar incertezas.
A mudança pela qual estamos passando não nos dá tempo para aprender a nova tecnologia e incorporá-la nas salas de aula.
Tudo isso para dizer que vejo que a mudança que estamos passando com a inteligência artificial exige reavaliar como ensinamos e aprendemos, desde a escola até a universidade. E isso impacta como selecionamos profissionais para as nossas empresas.
Recentemente em uma visita a Tóquio, assisti a palestra da pesquisadora e PhD em matemática e inteligência artificial Noriko Arai. Seu trabalho mais reconhecido é a criação de um sistema de IA treinado para passar nos exames da universidade de Tóquio.
Em 2017, o sistema demonstrou um resultado melhor do que o de 80% dos estudantes. Isso tudo muito antes dos estudos do ChatGPT que passaram nos famosos SLTs (System Level Test) americanos (e, mais recentemente, nos testes para se tornar advogado também). Ela explicou que a maneira como ensinamos é baseada em memorizar e muito pouco em ser lógico ou criativo para resolver problemas.
Para demonstrar essa hipótese, a professora desenvolveu o Reading Skill Test (RST), um teste que avalia seis habilidades fundamentais de leitura e compreensão tanto em humanos quanto em máquinas.

O que ela descobriu foi surpreendente e preocupante: quase metade dos estudantes japoneses do ensino fundamental não conseguiam se sair melhor do que as máquinas em termos de entender as relações básicas entre palavras em uma frase.
Mais alarmante ainda foi constatar que mais da metade dos alunos do sétimo ano não se saía melhor que escolhas aleatórias em questões envolvendo inferências e compreensão de definições.
Em outras palavras, mesmo em um país como o Japão, conhecido por seu alto desempenho educacional no PISA (teste internacional que avalia competências em leitura, matemática e ciências, indo além das perguntas tradicionais), os estudantes estavam lendo textos dos seus próprios livros didáticos sem compreendê-los.
Isso sugere que nosso sistema educacional pode estar treinando estudantes a ler como máquinas, focando em padrões superficiais em vez de desenvolver compreensão profunda, pensamento crítico e capacidade de fazer conexões significativas.
JOVENS APRENDENDO A APRENDER
Recentemente estive em dois eventos com iniciativas que buscam mudar essa perspectiva. No Web Summit, em Lisboa, conheci a equipe de inovação do estado do Piauí. Eles têm um programa de intercâmbio que todos ano leva mais de 30 alunos do ensino médio para cinco países, para aprender sobre empreendedorismo.
Os alunos que participam dessa viagem passam por um programa de aceleração e ideação em tecnologia. Quatro deles são selecionados para receber investimento e tirar suas ideias do papel. Isso tudo antes de entrarem na universidade. O último edital recebeu quase 10 mil inscrições.
Também estive no lançamento da AI House Amsterdã. O espaço, promovido pela Prosus – empresa dona do iFood e liderada pelo brasileiro Fabrício Bloisi – visa promover a troca irrestrita entre empresas para o desenvolvimento da tecnologia na Europa.

Na fala de abertura, Bloisi reforçou que a Europa só será um grande polo de inovação em IA quando quebrar os silos de conhecimento entre pessoas e organizações, citando exemplos de outros locais que já fizeram o mesmo e estão muito à frente em iniciativas.
A ideia é fomentar o ecossistema para gerar mais colaborações e trocas – ou seja, minimizar o que chamamos de gate keeping (manter informações atrás de “portões”).
Em conversas após o lançamento, conheci estudantes que vêm de áreas diversas de conhecimento e que já estão usando IA de forma criativa, participando desde muito cedo em hackathons na casa, resolvendo problemas reais, sem necessariamente saber desenvolver.
Ana Bertol, COO da minha equipe, participou de uma entrevista sobre os limites que a IA impõe quando quem gera o código é uma pessoa que tem muito conhecimento sobre negócios, mas pouco conhecimento técnico. Ou seja, pessoas que não têm treinamento hard em desenvolvimento, mas que usam IA para escrever e compilar o código e até lançar protótipos funcionais.
a mudança que estamos passando com a IA exige reavaliar como ensinamos e aprendemos, desde a escola até a universidade.
Em uma empresa de serviços, um dos grandes gargalos na construção de ferramentas é a falta de alinhamento e comunicação entre conceito, design e desenvolvimento. Com o uso de ferramentas de IA para rapidamente trazer as ideias e os conceitos das pessoas com entendimento real do problema, esse ciclo pode reduzir o trabalho em meses.
Mesmo que o protótipo não saia nos padrões técnicos mais adequados, o que vale mais: ter alguém que entende profundamente o problema materializando a ideia rapidamente para depois escalá-la, ou levar meses construindo algo sem saber se funcionará? Nós temos optado pela primeira alternativa.
Ter hard skills nesse cenário tem sido muito importante para a consolidação e robustez de programas. Fazer com que algo funcione de ponta a ponta só com uso de IA hoje ainda é arriscado, especialmente quando estamos falando de dados sensíveis ou desconhecidos.
Mas prototipar e dar vida a produtos que antes poderiam levar meses para serem desenhados estará cada vez mais nas mãos de pessoas com muitas habilidades soft, capazes de entender problemas e pensar em como aplicar soluções para os negócios.
CAMINHO SEM VOLTA
A mudança pela qual estamos passando não nos dá tempo para aprender a nova tecnologia e incorporá-la nas salas de aula. Mas os alunos já fazem isso, não há volta.
O estudo da professora Arai sobre os alunos japoneses que “leem sem compreender”, contrastando com jovens piauienses empreendendo antes da universidade ou os participantes de hackathons em Amsterdã resolvendo problemas reais com IA ilustra que talvez, em alguns lugares, a visão da Letícia de 19 anos que só acreditava em hard skills esteja mudando.
A capacidade de fazer as perguntas certas, de colaborar através de silos de conhecimento, de pensar criticamente e de aplicar o que sabemos em contextos completamente novos é o que muitos jovens estão aprendendo por meio desses programas. Eu acredito que é exatamente isso que nossa educação – e nossas empresas – deveriam priorizar.

A verdadeira provocação que a inteligência artificial nos traz não é sobre competir com máquinas em tarefas que elas fazem melhor. É sobre repensar o que significa educar e contratar na era da IA.
Se continuarmos valorizando apenas memorização e reconhecimento de padrões, estaremos formando profissionais facilmente substituíveis. Mas, se educarmos e selecionarmos para curiosidade, pensamento crítico e lógico, capacidade de sintetizar informações díspares e criar conexões inesperadas, estaremos preparando pessoas para um futuro onde essa incorporação será muito mais segura.
Porque, no final, aprender a aprender não é só uma habilidade do futuro. É a habilidade que garante que continuaremos relevantes, adaptáveis e, quem sabe, insubstituíveis.
