A barraca voadora e a professora dos professores
Você só consegue de fato contribuir com algo relevante para qualquer ambiente ou grupo de pessoas se estiver aprendendo com eles
Tudo começou com um sachê de ketchup. O ano era 1986. Eu tinha mudado para o curso de design da PUC/ Rio depois de ter entendido que o sonho de ser engenheiro naval e desenhar veleiros não era para mim (levei três semanas para amarelar para o Leithold, livro de cálculo de 600 páginas escrito em uma língua alienígena). Estava no segundo período de desenho industrial e tinha que escolher um tema para o meu próximo projeto.
Naquela tarde, na cantina do IAG comendo um pedaço de pizza, me vi travando uma batalha com um sachê de catchup (sim, cariocas cometem essa heresia de colocar ketchup na pizza!), e claro que ele venceu! (Ouça esta coluna aqui)
Todo lambuzado de vermelho, me lembrei que tinha tido, poucos dias antes, outra experiência traumática tentando abrir um lacre de alumínio de um vidro de xarope. Pronto, meu tema estava escolhido. Iria fazer um projeto sobre embalagens mais inteligentes.
Na aula seguinte, apresentando minha intenção para a Ana Branco, hoje minha eterna guru, amiga e mentora, mas naquela época uma professora, no mínimo, extravagante em sua sala de aula, com uma fogueira sobre um chão de terra e uma cobertura de lona, ela achou que o tema poderia render um projeto interessante e me pediu então que levasse, na aula seguinte, algumas referências de embalagens que eu considerasse boas inspirações.
Menino novo, ainda tentando entender o contraste entre aquele ambiente hippie com aquela professora meio bruxa, meio fada, e tudo que existia no meu imaginário sobre o que seria uma sala de aula onde aprenderia a desenhar cadeiras e luminárias arrojadas, como as que via nos livros de design italiano, levei umas embalagens de uns biscoitos importados que minha mãe comprava e que tinham umas gavetinhas que me pareciam o máximo de usabilidade. Pra quê?!
Ana pegou minhas estimadas referências, olhou, olhou, deu uma gargalhada e as jogou na fogueira! “Garoto, você tá maluco? Vai querer começar a entender o que é ser um designer se inspirando nessas referências medíocres? Você já pensou na embalagem que te trouxe ao mundo?"
Ela se referia à barriga da minha mãe como uma super embalagem, que protege quando tem que proteger, nutre e acolhe o conteúdo e na hora exata o convida para uma vida independente. Nessa hora eu tive uma epifania que definiria minha vida como criativo e profissional para sempre. Entendi que podia olhar para a natureza como fonte de inspiração infinita para soluções de design.
No mesmo dia, comi uma banana e pude comparar quão mais friendly ela era se comparada ao infame sachê de ketchup. Naquele momento, eu estava descobrindo a “biônica”, hoje “biomimética”, que viria a definir minha trajetória profissional. Ser o lastro da maioria das minhas reflexões criativas, a semente original da Tátil, o escritório de design que este ano faz 35 anos e que viria a nascer um ano depois naquela mesma barraca, cultivada e nutrida pelas provocações revolucionárias dessa mulher incrível, que hoje tanto quero homenagear.
Ana Branco, com seus recém completos 80 anos e ainda em atividade na PUC, foi muito mais que uma professora para mim e para seus milhares de alunos nesses mais de 40 anos de trajetória.
Ana sempre acreditou que só pela convivência podemos de fato capturar o potencial criativo que existe em todos os espaços.
Ela, acima de tudo, nos ajudou a entender quem de fato nós éramos. Nossa verdadeira natureza, nosso lugar de potência. Em uma aula de homenagem recente, no campus em que eu e inúmeros outros alunos de várias épocas organiza- mos, era fácil ver nos depoimentos o quanto era esse o seu verdadeiro papel.
Em nossos depoimentos sobre cada trajetória ficava claro que, muito mais do que nos ensinar metodologias ou técnicas de como sermos bons designers, Ana nos provocava, por meio de suas “artimanhas metodológicas”, a mergulhar em espaços diversos como escolas, hospitais, academias ou qualquer outro lugar em que pudéssemos interagir em profundidade com pessoas apaixonadas pelo o que faziam.
Eram os intercessores. Professores, médicos, terapeutas ou outros profissionais que tivessem objetivos de transformar realidades com os quais nos aliaríamos para, acima de tudo, aprender e, só na sequência, se tudo desse certo, contribuir por meio de ideias e soluções de design que fizessem a diferença.
Ana sempre acreditou que só pela convivência podemos de fato capturar o potencial criativo que existe em todos os espaços. Sempre trabalhando para catalisar o que já existe em abundância e não na carência. Sempre defendendo que o aprendizado verdadeiro está muito mais no processo, na jornada e não nos resultados.
Nessas jornadas profundas de muita entrega, com muitos tropeços, desafios, sorrisos e lágrimas, tínhamos a oportunidade de tomar contato com nossas limitações, nossas habilidades, forças e fraquezas, nosso verdadeiro caráter. Um grande laboratório existencial em que o projeto era apenas um pretexto para avançarmos no entendimento do que nos mobiliza, da maneira como vemos o mundo, no que acreditamos, do que faz nossos olhos brilharem! Autoconhecimento na veia.
Ana nos ensinou design thinking muito antes desta metodologia ser apresentada ao mundo por Stanford e pela IDEO. Desenhar “com” e não “para alguém”, prototipagem e experimentação o tempo todo, empatia absoluta com quem de fato conhece o tema no qual você está interessado. Ouvir mais do que falar.
Nunca chegar com a arrogância de achar que sabe o que o outro precisa, ou que você é o “mágico solucionador” dos problemas de alguém. Você só consegue de fato contribuir com algo relevante para qualquer ambiente ou grupo de pessoas se estiver aprendendo com eles. Se as trocas forem verdadeiras em um ambiente de confiança e cumplicidade.
Ana sempre dizia que os “clientes” perfeitos para você evoluir como designer são as crianças. Elas não têm o menor pudor em dizer para você que não gostaram de algo que propôs e só assim é possível compreender o que de fato será relevante para alguém. Clientes com melindres no feedback só comprometem o processo de evolução das ideias.
Ana Branco foi muito mais que uma professora para mim e para seus milhares de alunos nesses mais de 40 anos de trajetória.
Eu fui entendendo o que isso significava durante os quatro projetos que fiz com a Ana. Um deles com crianças surdas no Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), onde passei mais de um ano aprendendo com eles o que era a multissensorialidade. Certamente influência importante do trabalho que fizemos na identidade dos Jogos Paralímpicos do Rio e também nas cerimônias de abertura e encerramento que co-dirigi com Vik Muniz e Marcelo Rubens Paiva.
Já faz mais de 38 anos daquele bendito sachê de ketchup que mudou minha vida. Foi na barraca que entendi e senti quem era o Fred. O que de fato me interessava. Foi lá que aprendi a olhar para o mundo de um outro jeito, mantendo vivo o olhar das crianças com quem convivi em tantos projetos.
Foi na barraca que conheci alguns dos meus amigos da vida toda. Foi lá que entendi que o verdadeiro papel do designer é ser um agente de conexão de ideias, de saberes de pessoas. Foi lá que entendi que resultado é sempre proporcional a envolvimento. Não tem jeito. Se você quer que algo especial aconteça na sua vida, você tem que investir sua melhor energia com consistência e intensidade.
Passei isso para os mais de 600 alunos que tive durante os quase 20 anos em que lecionei no mesmo curso de design em que me formei. Passei para minhas filhas, que também foram alunas da Ana na barraca.
Agora no dia 6 de novembro vamos lançar, na semana que celebra os 30 anos da pós-graduação em design da PUC, o documentário “Barraca Voadora”, mostrando um pouco do que compartilho hoje aqui com vocês. Homenagear o olhar absolutamente revolucionário que a Ana Branco segue oferecendo para seus alunos para que, assim, mais pessoas possam conhecê-lo.
Dirigido por Fernanda Heinz, a mesma que diretora do incrível “Biocêntricos”, o documentário busca capturar um pouco da força, da delicadeza, da poética original da “professora dos professores” e toda a sua capacidade de contribuir para a formação de indivíduos que, por meio da paixão e da criatividade, seguem acreditando que é possível mudar o mundo.