A coragem de ser

A coragem nos eleva acima da mera sobrevivência. A coragem nos faz livres

Créditos: Mathew Thomas/ Fahad AlAni/ Andre Moura/ Pexels

Andrés Bruzzone 4 minutos de leitura

O vento, que continua a aumentar, faz as velas baterem com força. As ondas se encrespam e sacodem o barco. Deitado, escuto o barulho, cada vez mais intenso. Estou sozinho no meu veleiro Endeavour, no oceano Índico sul, mais ou menos na metade do caminho entre a África e a Austrália, tentando dormir.

Enfio a cabeça dentro do cobertor úmido. Não consigo pegar no sono, e não é pelo ruído nem pelas sacudidas frenéticas. É a consciência que pesa. Sei que preciso ajustar as velas, que algo pode se quebrar se não o fizer. O mar não perdoa. 

Resignado, deixo o beliche e começo a me vestir para enfrentar o temporal: duas camadas de roupa térmica, uma impermeável. Estou calçando uma bota quando uma onda mais violenta joga o barco de lado e me faz voar do outro lado da cabine.

Aterrisso sobre a mão esquerda; um osso estala. “Quebrei um dedo!”, penso. A dor é intensa, mas o medo é maior: ainda faltam pelo menos 20 dias para chegar e a perspectiva de navegar com uma mão inutilizada assusta. 

Mas, urgente agora é resolver a questão das velas. Saio ao convés. A meteorologia não previa este vento nem estas ondas; reduzir as velas nessas condições exige força.

Sinto a adrenalina disparar, o coração bate frenético. Canto para me animar enquanto amarro as cordas, recolho velas, arrasto uma que quase cai no mar... é um canto guerreiro, pura força ancestral para superar o medo e o cansaço.

Só voltarei ao conforto relativo da cabine duas horas mais tarde, suado e molhado até o umbigo, mas feliz e satisfeito: fiz o certo, o barco desliza suave pelas ondas, apesar do vento furioso. Posso descansar. A dor na mão é intensa; tomo um analgésico. Deito, molhado como estou. Durmo instantaneamente. 

A mão demorou a desinchar, mas não estava quebrada. Consegui completar em 48 dias a travessia pelo oceano mais desafiador, o Everest dos mares. Houve algumas tempestades e calmarias, avarias diversas e momentos de tensão.

Viver com coragem é escolher o caminho do ser frente à covardia de não ser.

Mas, sobretudo, muita beleza: uma escala numa ilha deserta, o melhor pôr do sol do planeta, pássaros sempre me acompanhando, estrelas cadentes, a lua, golfinhos, ondas majestosas.

Mesmo nas tempestades mais duras há beleza. Schopenhauer chama de sublime esses momentos em que superamos o medo diante das forças da natureza que podem nos aniquilar e nos sentimos parte de algo maior, em sintonia com o universo. 

Quando conto que atravesso oceanos, as pessoas costumam reagir dizendo: “que coragem!”. Fico sempre constrangido. Não me sinto especialmente corajoso – ou não por fazer essas travessias.

Claro que é preciso coragem para ficar sozinho em um veleiro no meio do oceano, a milhares de quilômetros de qualquer ajuda, sem chance de resgate. Dá medo. Mas coragem não é ausência de medo; não o elimina nem o ignora: atravessa-o. É consciência, não temeridade. 

Homem no mar  em barco a vela/ viver com coragem
Crédito: Arquivo pessoal

A palavra coragem vem do latim cor, que significa coração. É das entranhas, não da cabeça. Quando saio ao oceano, estou apenas fazendo o que devo fazer. Porque meu ser manda. Ou minha alma.

Isso vai muito além do ato heroico. Quando restringimos coragem ao heroísmo, perdemos de vista o quanto ela é indispensável para uma vida bem vivida. Viver com coragem é escolher o caminho do ser frente à covardia de não ser. 

Coragem é necessária para reconhecer o próprio desejo e lutar por ele.  Às vezes, o sucesso cobra um preço muito alto e descobrimos que realizar um sonho pode ser arriscado demais. Também podemos não conseguir. Precisa de coragem para aceitar o fracasso como possibilidade. Para reconhecer a própria insuficiência.

coragem não é ausência de medo. É consciência, não temeridade. .

Algumas batalhas definem quem somos: não entramos nelas para vencê-las, mas para travá-las. Sem garantias, sem qualquer certeza além de que estamos fazendo o que precisa.

Os velejadores que se preparam para atravessar o oceano Índico se encontram para tomar cerveja e contar histórias de mar no Tavern of the Seas, o restaurante do mítico Royal Cape Yacht Club, clube náutico da Cidade do Cabo. No cardápio, uma frase atribuída ao escritor americano Mark Twain resume tudo sobre o valor da coragem: 

 “Daqui a 20 anos, você vai se arrepender mais das coisas que não fez do que das que fez. Por isso, solte as amarras, deixe o porto seguro e navegue, encha suas velas de vento. Explore. Sonhe. Descubra.” 

A coragem nos eleva acima da mera sobrevivência. A coragem nos faz livres.


SOBRE O AUTOR

Andrés Bruzzone é fundador e CEO da Pyxys, mediatech brasileira que se propõe a reinventar o negócio da mídia com novos modelos de pub... saiba mais