A inquietação que nos inspira a resistir
Precisamos reconhece que nossa cultura e nossos modos de ser carregam em si a capacidade de ressignificar o presente e reimaginar futuros
O ano de 2025 mal começou e já me deixa inquieta. A esperança e os desejos da noite de réveillon pareceram morrer na praia quando Mark Zuckerberg surgiu nas telas para anunciar as mudanças nas políticas de moderação de conteúdo da Meta.
A flexibilização das diretrizes de plataformas que fazem parte do cotidiano de quase todo mundo – Facebook, Instagram, WhatsApp – pode tornar grupos já vulneráveis ainda mais expostos à segregação, ao ódio e à violência.
Assim, nos primeiros dias de janeiro, quando eu só queria estar descansando, não conseguia parar de prestar atenção na pergunta que martelava dentro da minha cabeça: como podemos nos proteger dessas estruturas que lucram às custas do coletivo?
Tentei parar, arrastar essa ideia para cima. No Reel seguinte, entretanto, só vi fogo. Mas desta vez não era a Amazônia, o Pantanal ou o Cerrado: era Los Angeles, terra dos ricos e famosos, onde mansões queimavam sem controle após as chamas que tiveram início nas florestas se espalharem por grande parte da cidade. Que, aliás, fica na mesma Califórnia do Vale do Silício – sede da Meta e de outras big techs.
Pronto, mais uma pergunta surgiu gritando na minha mente: o que essa tecnologia que nos intimida em vez de nos libertar tem a ver com as mudanças climáticas cujos efeitos se mostram cada vez mais terríveis?
Minha cabeça foi a mil. Pensei nos algoritmos que, ao promover desinformação e discursos tóxicos, se interligam a cadeias de produção que exploram recursos naturais, alimentam padrões de consumo insustentáveis e perpetuam a crise climática.
Pensei na fumaça dos incêndios como manifestação física de uma desconexão cada vez mais devastadora: tecnologia sem ética, progresso sem compaixão.
Foi nessa hora que olhei para a mesa de cabeceira. Lá estava ele, meu novíssimo exemplar de "Festas Populares no Brasil", de Lélia Gonzalez. O livro, um dos companheiros da minha virada de ano, apresenta as manifestações culturais afro-brasileiras como fonte de criatividade, transformação e, sobretudo, resistência.
Lélia, nossa grande filósofa, explica lindamente como as festas populares, muitas vezes desmerecidas como baixa cultura, são, na verdade, grandes palcos de afirmação política e identitária. Elas reivindicam espaço e contestam marginalizações históricas.
Só de olhar para o livro uma chave na minha cabeça virou. Imaginei nossas tradições populares resgatando, por séculos, a capacidade de reinvenção coletiva, com grupos minorizados ocupando as ruas com alegria, música e dança.
Senti a resistência pulsar no tambor do maracatu, na roda de samba, no cortejo do bumba meu boi – manifestações que celebram a vida e, ao carregar em si a força de uma história coletiva, desafiam estruturas de opressão.
Escrito originalmente em 1987, o livro, embora tenha recebido prêmios internacionais, nunca foi publicado no Brasil e permaneceu quase desconhecido por aqui.
Quando ocupamos o espaço público com alegria, música e dança, estamos reivindicando nossa humanidade.
Seu relançamento pela editora Boitempo, no ano passado, quase quatro décadas depois, busca corrigir esse apagamento histórico – que, como argumenta Raquel Barreto no prefácio, reflete a marginalização deliberada da produção intelectual de mulheres negras.
É impossível não se encantar com os textos e registros fotográficos que revelam as marcas da herança africana na cultura brasileira, a integração entre o sagrado e o profano e a reinvenção das tradições religiosas na formação do imaginário cultural do país.
Foi o que me fez enxergar as festas populares como mapas de reinvenção – mapas que podemos usar para enfrentar as múltiplas crises contemporâneas. Afinal, se essas tradições resistiram à escravidão, ao colonialismo e ao racismo estrutural que perdura até hoje, o que elas podem nos ensinar sobre como combater as emergências climáticas, digitais e sociais que nos desafiam neste 2025?
"Festas Populares no Brasil" também me lembrou de que a resistência não é apenas luta, mas também criação. Quando ocupamos o espaço público com alegria, música e dança, estamos reivindicando nossa humanidade. É daí que precisamos buscar a energia necessária para encarar o que está por vir.
Que tal iniciarmos este ano celebrando? Não uma celebração escapista, mas uma que reconhece que nossa cultura e nossos modos de ser carregam em si a capacidade de ressignificar o presente e reimaginar futuros.
Comecei dizendo que 2025 já chegou me deixando inquieta, mas isso não precisa ser algo ruim. A inquietação nos move, nos tira da inércia, nos faz questionar o que parecia dado e imaginar novos caminhos. Nos inspira a resistir.
Bora lá!