A inteligência está em xeque

É preciso nos conectar com o que há de mais terreno para compreendermos a complexidade das inteligências artificiais

Crédito: cyano66/ iStock

Silvana Bahia 5 minutos de leitura

A inteligência artificial é um conceito em disputa. Isso fica cada vez mais claro para mim na medida em que vou participando de eventos, compondo mesas de debate, recebendo convites para colaborar em artigos científicos, podcasts, aulas. Tudo isso me faria uma especialista em IA.

Mas, posso confessar? Na maioria das vezes estou angustiada, tentando me ancorar em alguma ideia mais concreta sobre o que seria, definitivamente, inteligência artificial. Nunca me sinto à vontade. Sempre acho que falta algo, alguém, uma camada mais conceitual (e, às vezes, mais prática) sobre o que trata a IA. E mais ainda: sobre quem pode e quem não pode usar, pensar, elaborar sobre ela.

No finalzinho de maio, participei como mediadora de uma série de debates promovidos pela Fundação Itaú, em São Paulo. O mote do evento era articular estratégias para combater desigualdades no campo da cultura e da educação por meio da IA. É claro que aceitei o convite/ desafio de me colocar mais uma vez em desconforto.

O professor pernambucano Silvio Meira, em um dos debates do evento, sentenciou: "Talvez seja necessário redefinir o que entendemos por inteligência."

Silvio Meira

Se formos atrás das definições mais conservadoras sobre a inteligência, chegaremos na ideia moderna e ocidental sobre a centralidade humana e suas capacidades de processar informações, articular memórias, resolver problemas, decidir autonomamente sobre nossas vidas.

Mas há essas reflexões que nos atormentam: serão os seres inanimados inteligentes? O que diferencia o conhecimento do treinamento? Se inteligência é o que aprendemos com a ciência moderna, então poderia um robô ser perfeitamente humano? De que inteligência artificial estamos falando?

Nina da Hora nos provocou com seus pensamentos disruptivos sobre tecnologias responsáveis. Ela acredita que o conceito de IA deve ser elaborado a partir das necessidades humanas e sociais, servindo como suporte para ela, e não a definindo, encerrando a magia que é viver e morrer no mundo.

Me encanta e me expande a consciência e a ideia originária de que os rios, árvores e montanhas são entes poderosos com potência de vida e transformação aqui na Terra e além. Em "Futuro Ancestral", Ailton Krenak, a quem já fiz tanta companhia aqui nesta coluna, compartilha a sensação de viver a vida intensa dos rios.

As tecnologias que usamos hoje, e que caminham a passos tão acelerados, não são neutras, estão carregadas de intenções, de projetos políticos.

Krenak diz: "nos sentimos tão profundamente imersos nesses seres que nos permitimos sair de nossos corpos, dessa mesmice da antropomorfia, e experimentar outras formas de existir. Por exemplo, ser água e viver essa incrível potência que ela tem de tomar diferentes caminhos."

Não ousarei afirmar que há qualquer conexão entre os rios e os robôs. Mas sinto que é preciso, definitivamente, nos conectar com o que há de mais terreno para compreendermos a complexidade das inteligências artificiais e para que elas possam reproduzir em nós efeitos de expansão, justiça, amor e bem viver. Se não, seguiremos para a catástrofe. Isso é o que se apresenta.

Em 2023, a convite do Museu do Amanhã, organizei um pequeno mas poderoso livro cujo título é "Pode um robô ser racista?". Para responder a essa pergunta e a outras que parecem simples, convidei parceiros de caminhada, ativistas e teóricos das tecnopolíticas. Em cada texto reconheço a ousadia de pensar o futuro articulando o passado e admitindo o presente.

Ailton Krenak (Crédito: Reprodução/ Vozes da Terra)

A história será sempre resultado de jogos de poder. As tecnologias que usamos hoje, e que caminham a passos tão acelerados, não são neutras, estão carregadas de intenções, de projetos políticos. Mas os rios correm mais rápido. Agradeço a Bianca Kremer, Jonathan Nunes, Diego Cerqueira e Gabriela Agustini pelo presente de serem rios comigo na construção deste livro que pode ser acessado aqui.

Outro dia, vi nas redes sociais um post da incrível Nath Finanças. Ela dava conselhos à juventude que tem se desinteressado pela universidade. Nath diz que é preciso insistir na formação científica e que sua experiência mostra que o currículo acadêmico ainda é muito importante para abrir portas. 

Eu sei bem que as barreiras para as pessoas pobres e negras são muitas. Mas, apesar da estrutura elitista das universidades, ali também seremos capazes de construir novos conceitos. Esse também deve ser um lugar para imaginar outras inteligências.

A pós-graduação brasileira vive a pior crise deste século. Os fatores para abandonar ou simplesmente não se interessar mais pela carreira acadêmica ou pela formação científica são muitos. As últimas notícias de privatização das escolas públicas no Paraná certamente passam por aí.

Não nos enganemos: existe um projeto político e ideológico para que mulheres, mães, negros, indígenas, moradores de favelas e periferias não estejam preparados para disputar de igual pra igual o futuro das tecnologias. Certamente faremos diferente. O professor Fernando Almeida, da Universidade Federal de Pernambuco, nos dá uma dica.

Para ele, é preciso abandonar a ideia de interdisciplinaridade que vem formatando as ciências e partir para a transdisciplinaridade. A diferença estaria no fato de que a primeira trata da colaboração e integração de conhecimento entre disciplinas distintas, mas geralmente mantém-se dentro dos limites da academia.

A segunda iria além dessas fronteiras disciplinares e transcenderia os próprios limites entre ciência e sociedade. Abordagens transdisciplinares seriam capazes de unir uma ampla diversidade de formas de conhecimento, incluindo o acadêmico de diversas disciplinas, o conhecimento cotidiano e prático e o conhecimento experiencial.

Circular entre os mundos, fazer com que conhecimentos se adaptem, expandir os modelos de pensamento, métodos de pesquisa e fórmulas algorítmicas poderá indicar novos caminhos para a inteligência – dos homens e dos robôs. Sejamos rios.


SOBRE A AUTORA

Silvana Bahia é codiretora executiva no Olabi – organização dedicada a diversificar a cena de tecnologia e inovação no Brasil. Fellow ... saiba mais