A internet não criou a misoginia, mas amplificou o ódio
Redesenhar o ambiente digital é uma escolha coletiva sobre quais tecnologias apoiamos, quais modelos financiamos e quais vozes decidimos amplificar

Tenho repetido uma frase nos últimos tempos porque ela ajuda a organizar a conversa: a internet não criou o machismo, o racismo ou a misoginia, mas amplificou tudo isso. Amplificou porque o ambiente digital funciona, ao mesmo tempo, como espelho da sociedade e como lente de aumento. O que antes circulava em espaços privados hoje ganha escala, velocidade e permanência.
Essa lente, no entanto, está longe de ser neutra. Foi construída por uma indústria majoritariamente masculina, branca e localizada no Norte Global. E isso importa porque as escolhas técnicas nunca são apenas técnicas. São escolhas políticas.
Quem projeta tecnologia decide, na prática, quem pode participar do ambiente digital com segurança e quem arca com os custos dessa exclusão.
Algoritmos são escritos por pessoas, treinados com dados produzidos em sociedades profundamente desiguais e aplicados em contextos marcados por assimetrias de raça, gênero e classe.
Quando um sistema reforça estereótipos, racismo e invisibiliza mulheres ou amplifica misoginia, não estamos diante de um erro pontual, mas da incorporação dessas desigualdades ao próprio funcionamento da tecnologia.
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A misoginia já é estrutural no mundo off-line. Quando esses padrões entram nos datasets, nos modelos de inteligência artificial e nos mecanismos de recomendação, eles se automatizam.
Sistemas que associam mulheres a tarefas domésticas. Algoritmos que impulsionam discursos de ódio porque ódio gera engajamento. Plataformas que respondem com mais rapidez a denúncias feitas por homens do que por mulheres. Tecnologias de reconhecimento facial que erram mais com mulheres negras e acertam mais com homens brancos.
Prevenção, reparação e desenho responsável precisam caminhar juntos.
Esses exemplos não são exceções: revelam uma arquitetura.
Por isso, a misoginia online não pode ser reduzida a uma soma de ataques individuais ou a um problema restrito ao discurso de ódio. Ela opera como uma arquitetura de exclusão, uma engrenagem que busca silenciar mulheres, especialmente aquelas que ocupam espaços públicos de poder, expressam opinião ou lideram debates.
Esse impacto se intensifica quando falamos de mulheres negras, indígenas, trans e periféricas, entre outras mulheres que carregam outros marcadores sociais.
PROBLEMA ESTRUTURAL
As consequências vão além da violência direta. A misoginia online reduz a participação de mulheres no espaço público, empobrece o debate e limita a diversidade de vozes. Enfrentá- la não é apenas uma questão de segurança digital, mas uma condição para a própria democracia.
Foi a partir dessa reflexão que tive a honra de abrir, no início de dezembro, em Fortaleza, um encontro que reuniu sociedade civil e poder público para pensar caminhos de enfrentamento à violência de gênero no ambiente digital.
O encontro foi realizado pelo Olabi, pela secretaria de políticas digitais da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom) e pelo Ministério das Mulheres, com apoio do governo do Reino Unido e do Fundo Elas (fundo brasileiro de investimento social voltado exclusivamente para a promoção do protagonismo das mulheres).
Mais do que aprofundar diagnósticos já conhecidos, o desafio colocado ali foi avançar em respostas concretas para um problema estrutural. É nesse contexto que a ideia de pensar diversidade desde o desenho das tecnologias ganha centralidade.

Quando falamos em diversidade by design, estamos afirmando que inclusão não pode ser um ajuste posterior, incorporado depois que a tecnologia já foi lançada, nem algo restrito a acesso ou consumo.
Trata-se de considerar a diversidade desde o início: no código, no desenho dos algoritmos, nos modelos de negócio, nas políticas públicas e privadas e, sobretudo, em quem ocupa os espaços de decisão.
Quando plataformas priorizam engajamento a qualquer custo e falham em proteger quem sofre ataques, isso é resultado de escolhas de design, de incentivos econômicos e de decisões políticas. A boa notícia é que, se o problema está no desenho, as soluções também precisam estar ali.
No Olabi, trabalhamos há mais de uma década a partir da convicção de que as tecnologias devem servir à diversidade, à equidade e à ampliação de direitos.
TECNOLOGIA E DIVERSIDADE
Abrir o leque de quem produz tecnologia não é apenas uma questão simbólica, mas uma estratégia concreta para mudar as perguntas que orientam o desenvolvimento tecnológico, deslocar prioridades e criar soluções mais conectadas à vida real.
Quando mulheres negras, pessoas das periferias e grupos historicamente excluídos constroem tecnologia, entram em cena outras formas de imaginar, outras referências e outras urgências. Muitas vezes são capazes de enxergar problemas que grandes corporações globais sequer reconhecem. Códigos também podem, sim, reconfigurar estruturas.
Se o ódio se espalha com tanta facilidade, é porque as plataformas foram desenhadas para maximizar engajamento, e o engajamento mais fácil costuma ser o da raiva.
Transformar essa lógica exige ir além da moderação de conteúdo. Pressupõe repensar a arquitetura das plataformas, os incentivos econômicos e as políticas públicas que regulam esse ecossistema, tomando a justiça racial e de gênero como princípios estruturantes.
A misoginia online reduz a participação de mulheres no espaço público, empobrece o debate e limita a diversidade de vozes.
Isso envolve educação midiática, diversidade real nos espaços de decisão e cuidado com quem sustenta diariamente o debate público: ativistas, jornalistas, pesquisadoras e criadoras de conteúdo. Envolve reconhecer que leis são necessárias, mas não suficientes. Prevenção, reparação e desenho responsável precisam caminhar juntos.
Redesenhar o ambiente digital é uma escolha coletiva, uma escolha sobre quais tecnologias apoiamos, quais modelos financiamos e quais vozes decidimos amplificar.
Se formos capazes de fazer essa escolha com intencionalidade, podemos projetar futuros digitais que não apenas reproduzam o mundo como ele é, mas ampliem as possibilidades de quem, historicamente, foi empurrado para fora dele.
Que em 2026 possamos construir os futuros que precisamos construir desde o design.
