A lógica da suspeita: o que a crise da confiança revela sobre as lideranças

Confiar em alguém, confiar em uma empresa, confiar em uma liderança… tudo isso se tornou arriscado. Mas talvez seja justamente por isso que precisamos redesenhar a confiança como um ativo institucional.

A lógica da suspeita: o que a crise da confiança revela sobre as lideranças
Créditos: Rytis Bernotas e PeskyMonkey via Getty images

Ana Bavon 4 minutos de leitura

Desconfiamos uns dos outros. E, silenciosamente, aprendemos a desconfiar também das lideranças, das empresas, das promessas institucionais. A crise da confiança não é apenas interpessoal, é uma erosão ética que atravessa o mundo do trabalho, da política e dos afetos.

Nunca foi tão difícil confiar, nem tão necessário.

Vivemos em um tempo em que afeto precisa ser decifrado, liderança precisa ser “provada” o tempo todo, e promessas organizacionais de diversidade ou integridade parecem sempre ensaiadas. A confiança, que já sustentou laços pessoais e compromissos institucionais, se fragmentou em micropedidos de validação diária.

O problema não é que as pessoas ou as empresas sejam piores. É que fomos reprogramados para agir sob vigilância e responder com performance. Isso mudou a forma como nos relacionamos, dentro e fora das organizações.

A seguir, proponho uma reflexão que parte de uma vivência pessoal, como mulher autista exposta à literalidade das palavras e ao impacto real das ambiguidades, para questionar: qual é o custo corporativo de um mundo onde confiar virou um risco?

A GESTÃO EMOCIONAL PERMANENTE CHEGOU ÀS ORGANIZAÇÕES


A lógica da performance afetiva, tão presente nas redes sociais, também invadiu o mundo corporativo. Feedbacks viraram “conversas difíceis” que ninguém quer ter. As lideranças se mostram vulneráveis, mas somente até o limite do capital simbólico que isso gera. Valores institucionais viraram slogans, mas com baixa aderência prática.

A confiança foi terceirizada para protocolos, manuais, câmeras de vigilância e escuta passiva

Nas relações internas, o medo da exposição transformou o diálogo em política de danos. A confiança foi terceirizada para protocolos, manuais, câmeras de vigilância e escuta passiva.

E os dados mostram isso: segundo a Edelman Trust Barometer 2024, mais de 60% das pessoas afirmam não confiar plenamente em suas lideranças, mesmo quando admiram sua competência técnica.

Essa dissociação entre capacidade e credibilidade é uma das maiores ameaças à ética organizacional no século XXI.

A ÉTICA SE SUSTENTA NO TEMPO

Como mulher autista, fui muitas vezes exposta ao risco de confiar demais. Minha relação literal com a linguagem me levava a crer que “estamos juntos” significava parceria, que “pode confiar” significava segurança, que “temos valores claros” significava coerência.

Além de colecionar frustrações nas minhas relações pessoais e amargar inúmeras decepções, dentro das empresas, percebi que essas expressões, repetidas em cultura interna, manuais e reuniões, muitas vezes não passavam de gestos performativos. A fala não encontrava lastro na prática. E quando isso acontece, o impacto é devastador: erosão moral, cinismo institucional, retração do engajamento autêntico.

Nas relações de trabalho, essa dúvida constante enfraquece o senso de pertencimento e mina a base da confiança coletiva: a previsibilidade ética.

Sem ela, até o compliance vira teatro.

LIDERAR EM TEMPOS DE DESCONFIANÇA EXIGE MAIS DO QUE CARISMA

Vivemos um paradoxo: nunca se falou tanto em humanização, mas os vínculos de verdade se tornaram escassos. Liderar nesse cenário requer mais do que discurso inspirador, exige construir credibilidade pelo acúmulo de coerências.

A pergunta-chave para qualquer liderança hoje é: minha presença gera segurança ou vigilância?

E isso não se alcança com frases prontas ou storytelling emocional. Exige presença institucional real, práticas consistentes, responsabilidade distribuída e capacidade de sustentar conflitos sem recorrer à estética da neutralidade.

A pergunta-chave para qualquer liderança hoje é: minha presença gera segurança ou vigilância?

E a resposta não está no discurso, mas na experiência concreta das pessoas ao redor.

CONFIAR É UM GESTO RADICAL, TAMBÉM NO MUNDO CORPORATIVO

Confiar em alguém, confiar em uma empresa, confiar em uma liderança… tudo isso se tornou arriscado. Mas talvez seja justamente por isso que precisamos redesenhar a confiança como um ativo institucional.

Isso não significa criar mais processos de controle, significa criar mais espaços de presença ética. Lugares onde as pessoas possam errar sem serem expostas. Onde os líderes possam ouvir sem reagir defensivamente. Onde valores não sejam palavras, mas práticas incorporadas ao cotidiano.

A confiança, nesse sentido, é o verdadeiro diferencial competitivo. Porque ela não se compra com marketing, se conquista com coerência.

E VOCÊ, LÍDER: NO QUE AS PESSOAS REALMENTE CONFIAM QUANDO OLHAM PARA VOCÊ?

Na sua retórica ou nas suas decisões difíceis?

Na sua política de valores ou na forma como você lida com o dissenso?

Na sua escuta ou na sua reação quando é contrariado?

Se quisermos reconstruir a confiança, nas relações humanas e nas instituições, precisamos começar aceitando que vulnerabilidade não é um risco de imagem: é uma condição para a ética.

E que confiança não nasce do convencimento, nasce da coerência entre o que se faz, fala e sente.


SOBRE A AUTORA

Ana Bavon é advogada e estrategista especializada em governança social, impacto corporativo e responsabilidade institucional, fundador... saiba mais