A Sumaúma e as sementes de futuro. O desafio de regenerar nossa própria natureza
Regeneração.
Essa, assim como muitas outras palavras do universo da sustentabilidade, vem sendo esvaziada de sentido por usos superficiais, equivocados e oportunistas, espalhados em uma avalanche de textos, peças publicitárias e artigos sobre a bandeira ESG.
No dicionário, regeneração significa "dar nova existência a; melhorar; corrigir; revivificar".
Definitivamente, não faltam demandas por regeneração em nossa realidade exaurida e superexplorada em todos os níveis, do físico ao espiritual, do moral ao ambiental. Começando pela regeneração da própria palavra regeneração!
Sementes são, em si, futuros latentes. Elas concentram energia criativa como nenhuma outra estrutura consegue fazer.
Diferentemente do significado de restaurar um ambiente ou um quadro, onde pressupõe-se uma volta à condição original, regenerar tem uma ambição maior, mais realista, pois no lugar de querer voltar ao passado, o termo inclui uma dimensão criativa.
Difícil imaginarmos uma floresta amazônica restaurada. Voltando a ser como já foi. Na verdade, a natureza nunca volta. Ela sempre vai. Evoluir significa reconfigurar, rearticular, e é isso que a palavra regenerar ambiciona.
Abrir espaço para novas articulações, para novos desenhos que, sim, recuperem valores perdidos, mas considerando novas variáveis.
Se formos olhar para a floresta amazônica, há 40 mil anos não havia Sapiens por lá. Hoje, mais de 30 milhões de pessoas coabitam sete milhões de quilômetros quadrados com tatus, onças, araras e uma vegetação exuberante.
Logo, restaurar significaria investir em uma floresta inabitada por humanos. O que não parece um objetivo que faça sentido. Precisamos semear a realidade com novas ideias e configurações que tenham o poder de fazer brotar futuros desejáveis.
AS SEMENTES
Que tipo de sementes precisamos para isso? Esses dias, vi uma sumaúma com uns 40 metros de altura no Jardim Botânico do Rio espalhando suas sementes. Como é possível que um grão de cinco milímetros de diâmetro possa conter uma sumaúma em potencial?
Afinal, ali existe a ideia completa dessa gigante tropical, só carecendo de terra fértil, água, luz do sol e um pouco de sorte para que ela possa seguir a jornada da árvore mãe, que um dia também brotou de uma semente.
Sementes são, em si, futuros latentes. Elas concentram energia criativa como nenhuma outra estrutura consegue fazer.
Será que nossa prioridade, nesse momento de tanta demanda por regeneração, não seria direcionarmos nosso esforço criativo para desenvolvermos sementes de futuros?
Assim como uma árvore cresce na floresta para gerar valor coletivo produzindo sombra para alguns, moradia para muitos, fertilizando o solo com suas folhas e frutos, capturando o gás carbônico da atmosfera e devolvendo oxigênio, nossas sementes de futuro deveriam ter objetivos com a mesma ambição.
Elas devem carregar as melhores ideias. Ideias vivas. Resultado da soma de inteligências de múltiplos atores, da riqueza da diversidade. Ideias com o poder de mudar comportamentos e transformar cenários.
Para que elas tenham alguma chance de vingar e promover transformações relevantes, precisamos colocar os sistemas vivos no centro da conversa. Já deu essa estória de “consumer centric” ou mesmo “people centric”. Precisamos de soluções “life centric”!
Só assim poderemos regenerar o capitalismo e sua obsessão por crescimento sem fim, regenerar a democracia refém da polarização e da manipulação das verdades sintéticas.
Definitivamente, não faltam demandas por regeneração em nossa realidade exaurida e superexplorada em todos os níveis.
Precisamos regenerar nossas ambições como espécie, que de Sapiens parece que temos cada vez menos. A lista seria sem fim se pensarmos em tudo que carece de regeneração, de correção de rumo, de "revivificação", como diz o dicionário.
Em Paris. no mês passado, conversando com um amigo ele me contou sobre uma dessas ideias regenerativas poderosas. Dois empreendedores, Alexandre Drouard e Samuel Nahon, apaixonados pela qualidade dos produtos de origem francesa (terrois) abriram um restaurante na Rue du Nil. Uma rua degradada, com lojas fechadas há décadas no 2º arrondisement.
O bistrô acabou ganhando uma estrela Michelin e, com isso, passou a atrair uma grande clientela. A partir daí, os empreendedores resolveram espalhar sementes criativas para regenerar a rua e a região.
Abriram uma padaria, depois uma queijaria, um açougue, uma quitanda e uma peixaria, todos com a mesma marca: Terrois d’Avenir. Tudo orgânico e de alta qualidade.
Hoje, a rua está completamente regenerada e na lista de dicas cool de Paris. Claro que fui lá conferir e me esbaldar com as delícias com poder regenerador.
ESPALHAR E PROTEGER
Mas, como espalhar sementes em grande escala? A sumaúma faz isso de um jeito brilhante. Suas sementes são envoltas em uma paina que permite que elas voem para longe da árvore mãe, ou, ainda dentro do próprio fruto, possam atravessar oceanos. Já foram encontradas sumaúmas na África comprovadamente vindas das nossas florestas.
Como podemos criar estratégias para disseminar as melhores sementes de futuro aumentando a chance de elas brotarem e transformarem a realidade?
Como escrevi no artigo passado, acredito que a melhor estratégia seja por meio do desejo. Ideias que engajem pessoas, empresas e governos pelo vislumbre concreto de um futuro melhor. Mesmo que tenhamos que renunciar a parte do que nos trouxe até aqui.
Assim como uma árvore cresce na floresta para gerar valor coletivo, nossas sementes de futuro deveriam ter objetivos com a mesma ambição.
Uma vez que essas sementes sejam espalhadas, elas precisam ser protegidas para que possam resistir aos ataques de pragas, pessimistas de plantão e conservadores radicais.
Assim como formigas cortadeiras, mentes ancoradas em ideias ultrapassadas adoram devorar ideias frescas brotando, pois elas são sempre uma ameaça ao status quo. Como proteger os brotinhos de ideias regeneradoras?
O Nucleário, projeto dos irmãos Bruno e Pedro Rutman – e vencedor do prêmio Biomimicry Global Design Challenge –, usa a inspiração que vem das bromélias como solução para proteger os brotos de espécies da mata atlântica, em seu processo de crescimento, da gula dos predadores.
Um grande disco vazado com um design biomimético garante proteção física e provisão de água acumulada da chuva. Uma ideia simples, inspirada na inteligência natural para proteger os que virão a ser árvores no futuro.
Vamos ter que fazer o mesmo com as ideias com poder de regeneração.
O VALOR DO SOLO
De certa forma, muitas das sementes de futuro já existem por aí e vêm sendo cultivadas nas áreas de inovação de empresas, em centros de pesquisas nas universidades e em milhares de startups mundo afora.
O problema é que não bastam sementes de qualidade se o solo não estiver fértil. Por maior potencial que tenham, simplesmente não vingam. O solo nas empresas está ácido. Ressecado pelo pragmatismo dos resultados trimestrais.
A academia segue ancorada no passado perdendo estudantes e relevância, e sobram para os empreendedores mais obstinados o esforço de fazer vingar a semente do diferente, provando que é possível lucrar gerando impacto positivo, desafiando os gigantes com um ponto de vista mais fresco.
Mas ainda é pouco. Vingam menos sementes de futuro do que a urgência do nosso tempo exige. Ainda contamos nos dedos as empresas e organizações que realmente parecem estar atuando como protagonistas no desafio de virar o jogo. São sempre as mesmas. Temos que encontrar maneiras de fertilizar o solo para que mais sementes frutifiquem.
Um artigo de Satish Kumar, um dos gurus da Schumacher College, diz que as palavras húmus, humano e humildade têm todas a mesma origem latina. Talvez o solo pobre, sem húmus, seja consequência direta da desumanização do nosso modo de vida. Empresas desumanas, governos desumanos, relações desumanas.
Quando nos desumanizamos, viramos agentes da degeneração. Perdemos a dimensão de humildade que deveríamos ter diante do todo, da força e do brilho da natureza. E o pior, nos tornamos arrogantes demais para enxergar os riscos que estamos correndo, virando a maior ameaça para nós mesmos.
Talvez nosso verdadeiro desafio regenerativo seja, primeiro, regenerar a nossa própria natureza, recuperando as conexões ancestrais com a nossa casa, com o valor incomensurável da vida, como as populações originárias sempre tiveram. Um desafio espiritual.
Assim, quem sabe, mais sábios e humildes poderemos fazer valer a força do que nos torna verdadeiramente humanos, criando a condição para que futuros desejáveis frutifiquem. Pois, como diz nosso guru imortal Ailton Krenak, "o futuro é ancestral".