Capital cultural de encruzilhada – a patota de Cosme e o mercado doce

Entrega de doces realizada pela organização Redes da Maré (Crédito: Douglas Lopes)

Pâmela Carvalho 4 minutos de leitura

Risadas de criança, corre corre, mochila cheia... Olha o doce! Cocô de rato, pipoca, suspiro, pé de moleque, cocada, bala, pirulito, chiclete, doce de abóbora. Tá dando doce! Sol a pino, sobe ladeira, entra em beco, come caruru e manjar com a mão. Cosme, Damião, Doum, Ibeji, Ibejada, Erês… É doce! Chegou o 27 de setembro.

O Dia de São Cosme e São Damião é uma data comemorativa celebrada pelos cristãos católicos no dia 26 de setembro e pelas religiões de matrizes africanas e afro-brasileiras no dia 27 de setembro. O dia marca um movimento importantíssimo para pensarmos as identidades do Rio de Janeiro, a partir do conceito de “capital cultural de encruzilhada”.

A data ajuda a manter uma tradição que, para além de comercial ou religiosa, é um forte signo cultural e identitário brasileiro e carioca.

Esse capital cultural é forjado no cruzo, no encontro, na possibilidade que abre caminho ao invés de fechá-lo. É este capital cultural que faz de uma – várias, na verdade – data originalmente religiosa, um expoente para empreendedores do ramo de doces e brinquedos.

O cruzamento entre duas narrativas diferentes sobre as figuras que são homenageadas neste dia incrementam o conceito do capital cultural de encruzilhada. Nos terreiros, conta-se um dentre vários itans – histórias que ajudam a ver e ler o mundo, a partir da cultura iorubá – sobre Ibeji.

Conta-se que, em certo dia, Iku decidiu fazer uma visita à aldeia. Quando Iku entra na aldeia, leva com ele a morte, a fome e a doença. Iku não tinha a intenção de partir, ela desejava estabelecer residência permanente na aldeia e declarou que só partiria quando alguém conseguisse fazê-la dançar.

Numerosas pessoas e guerreiros buscaram diversas estratégias para persuadir Iku a partir, mas todas foram mal sucedidas. Foi somente quando dois gêmeos, conhecidos como Ibejis, apareceram. Eles pegaram seus tambores e afirmaram: "deixe isso conosco!"

E assim foi feito. Como? Um dos gêmeos tocava o tambor e dançava, enquanto o outro se escondia. Quando Iku se distraía, eles trocavam de lugar, garantindo que nunca parassem de dançar e permitindo que eles descansassem alternadamente.

Iku dançou incansavelmente até finalmente cair exausta no chão. Quando Ibeji foi questionado sobre como conseguiu fazê-la dançar tanto tempo, o outro garoto revelou sua presença saindo de trás de uma pedra e mostrando o segundo tambor.

Uma característica interessante na umbanda e no candomblé em relação às representações de São Cosme e São Damião é a presença de uma terceira criança vestida de maneira semelhante a eles. Essa criança é conhecida como Doum ou Idowu (representando crianças com até sete anos de idade), que seria protetor das crianças nessa faixa etária.

Acredita-se que, para cada dois irmãos que nascem, um terceiro não encarna neste mundo. Doum, mesmo não vindo ao mundo físico, é reverenciado como Ibeji, termo que significa "criança" em iorubá, sendo considerado como "aquele que não veio".

Entrega de doces realizada pela organização Redes da Maré (Crédito: Douglas Lopes)

Dentro das tradições católicas, conta-se que São Cosme e Damião foram dois irmãos gêmeos santificados pela igreja católica e, hoje em dia, são considerados os padroeiros dos médicos e farmacêuticos.

A vida de Cosme e Damião é envolta em mistério, com informações limitadas disponíveis. Mas, segundo a tradição, eles nasceram na Arábia em algum momento do século 3 d.C. Eram médicos e cristãos, o que gerou perseguição a eles. Além disso, tinham outros irmãos chamados Antimo, Leôncio e Euprepio.

Os irmãos médicos ofereciam seus serviços de forma voluntária, recusando pagamento. É importante ressaltar que, antes da morte, foram acusados de feitiçaria. Aproximadamente em 303 d.C, foram perseguidos e mortos pelo imperador Dioclesiano, no Império Romano. Com o ocorrido, tornaram-se mártires.

O encontro dessas duas narrativas – e várias outras – diz muito sobre o sincretismo religioso e também sobre a capacidade inventiva brasileira. Nestas terras, os irmãos passam a ser os padroeiros das crianças e se fortalecem nos terreiros de umbanda e candomblé, onde se consagra a entrega de doces para as crianças espirituais e do mundo terreno.

A data, que povoa o imaginário dos cidadãos e cidadãs do Rio de Janeiro, revela um incremento no que chamaremos de “mercado doce”: lojas especializadas em guloseimas, doces e brinquedos. No Rio de Janeiro, destaca-se o Mercadão de Madureira, que reúne dezenas de lojas do ramo.

No primeiro semestre de 2022, houve um crescimento de 11,43% na produção de doces, comparando ao mesmo período do ano anterior. O Dia de Cosme e Damião contribui para o aquecimento do mercado.

No total, foram 370 mil toneladas de doces em 2022, ante 332 mil produzidas em 2021. O setor gera cerca de 20 mil empregos diretos, segundo dados da Associação Brasileira da Indústria de Chocolates, Amendoim e Balas (Abicab).

A patota de Cosme nos ensina sobre capital cultural, encanto, mercado e descoberta. Assim como os Ibejis espantaram Iku, o 27 de setembro ajuda a espantar o fantasma das “más vendas” no mercado de doces e manter aquecida uma data que, para além de comercial ou religiosa, é um forte signo cultural e identitário brasileiro e carioca.


SOBRE A AUTORA

Pamela Carvalho é gestora de negócios de impacto social e coordenadora na Redes da Maré. Pâmela Carvalho é historiadora, educadora, co... saiba mais